A ambiguidade narrativa em “Dom Casmurro”
O enredo de Dom Casmurro, de Machado de Assis, centra-se em uma dúvida: Capitu traiu ou não seu esposo Bentinho com Escobar, melhor amigo dele? O Bruxo do Cosme Velho escreveu uma história tão ambígua que não há como se ter uma certeza absoluta – motivo pelo que o “Julgamento de Capitu” tornou uma espécie de “hit” entre as avaliações de Literatura no Ensino Médio. Contudo, a grandeza dessa obra transcende à questão da “culpabilidade ou inocência” de Capitu, pois essa grandeza está na própria ambiguidade em que foi construída a história.
Quando Machado de Assis escreveu seu famoso romance, o tema do adultério estava em voga: Madame Bovary, de Gustave Flaubert; Ana Karênina, de León Tolstói e O Primo Basílio, de Eça de Queiroz aparecem como uma pequena amostra de como o tema foi, como reação às histórias de “Amores Românticos”, em que as agruras passadas apenas solidificarem um amor eterno, fiel e sincero a ser recompensado no final. Os escritores realistas contrapõem a perspectiva de que o relacionamento amoroso pode ser mais complexo, com a possibilidade de o amor possa ser finito, infiel e com lapsos de dissimulações. A rotina do casamento mostra que nem tudo são flores – antes, existem espinhos que ferem e fantasma da dúvida se apresenta como terror frequente, como pode ser visto nos três romances supracitados. Contudo, em todos eles existe uma certeza: a mulher foi infiel e por isso - condenada. É diante dessa constante que Machado de Assis apresenta um diferencial, ao apresentar outro prisma ao tema.
A resposta ao amor romântico que Machado de Assis apresenta não é um relato de uma mulher que, devido à frustração do casamento, se envolve numa extraconjugal que levará a condenação moral. Dom Casmurro se apresenta como uma história do ciúme de tal proporção que se levanta a suspeita de uma traição. O narrador, Bentinho Santiago velho e ressentido, rememora os fatos de sua juventude que levaram ao namoro, casamento e separação de Capitu, procurando a todo custo em condená-la de forma obsessiva. O leitor MUITO DESAVISADO é então levado a concluir que Capitu é culpada, através da leitura superficial do romance.
Em uma leitura mais atenta, no entanto, percebe-se a parcialidade como a história é contada: Em nenhum momento se ouve a fala independente dos demais personagens (já mortos quando a história é contada – principalmente Escobar e Capitu, principais envolvidos nessa trama). Outro fato é que o velho Bentinho não apresenta provas concretas, apenas suposições forjadas na interpretação pessoal que ele faz dos fatos (como no caso da aparente semelhança entre Escobar e seu filho Ezequiel). E se juntar, no final, um personagem-narrador cujo caráter é de uma pessoa ressentida, dominada pelas mulheres e sem grandes referências masculinas para forjar seu ego e que é assombrados pelos seus fantasmas da dúvida (como pode-se se observar nos primeiros capítulos, onde se descreve a atual casa do Dom Casmurro e nos detalhes, estão os bustos de grandes homens da histórias que foram traídos), chega-se a situação de que ESSA versão da história, não corresponde totalmente à “verdade dos fatos” e que, portanto, poderia se descartar juridicamente do auto do processo contra Capitu.
Ora, descartar essa narrativa não inocenta simplesmente Capitu - e esse é o golpe de mestre que o autor dá aos seus leitores, ao não apresentar uma resposta definitiva sobre o tema. Machado de Assis mostra que, de toda essa putativa querela da culpabilidade ou inocência da personagem feminina, sobrou apenas um texto soberbo de ficção centrada na ambiguidade narrativa.
Desse modo, percebe-se Machado de Assis justifica sua condição de grande escritor brasileiro, ao retomar o velho tema da traição para criar uma obra-prima sobre o tema do adultério, cuja análise mais superficial está em condenar ou não Capitu. Em contrapartida, a História e a Literatura já deu se veredito a esse romance machadiano, ao elencá-lo como uma aula de como escrever um romance deliciosamente ambíguo.