O
Cânone da literatura erótica DE AUTORIA FEMININA SOB O PRISMA DA CRÍTICA CULTURAL: REFLEXÕES NECESSÁRIAS
1 Introdução
O objetivo desse artigo é discutir a questão do
cânone na literatura erótica de autoria feminina, tomando como corpus os textos de Anaïs Nin. Para
tanto, em um primeiro momento, e considerando ser a autora de expressão
anglófona, será analisado o texto “A
ascensão de inglês” (2006), de Terry Eagleton, para compreender o
surgimento dos estudos de literatura inglesa. Depois, serão analisados
dialeticamente o modelo interpretativo de Silviano Santiago (2000) e a questão
do cânone de autoria feminina, nas perspectivas de pesquisadoras como: Constância
Lima Duarte (1997), Zahidé Lupinacci Muzart (1997), Rita Terezinha Schmidt
(2008), entre outras. Finalmente, serão feitas as considerações finais.
Para uma melhor compressão do trabalho, faz
necessário conhecer Anaïs Nin, escritora de expressão anglófona do início do
século XX que se notabilizou pelos seus diários e escritos eróticos. Vivendo
nos loucos anos 20 e casada com Hugh Parker Guiller, manteve uma vida
sentimental bem movimentada, datando desta época o affair com o casal June e Henry Miller. E, foi através do seu
amante (escritor de verve erótica), que ela começou a escrever os contos
eróticos que viriam a formar os volumes “Delta de Vênus” (2006) e “Pequenos
Pássaros” (2007) e no poema em prosa “A Casa do Incesto” (1991).
Na gênese de seus contos, Anaïs Nin conta que
os escreveu inicialmente por encomenda de um colecionador anônimo, pagando um
dólar a página e exigindo apenas que nos contos fosse cortada a poesia e
ficasse apenas “o sexo clínico, privado de toda a calidez do amor – a orquestração
de todos os sentidos, toque, audição, visão, paladar” (NIN: 2006, p. 8). Este fato, como ela conta no prefácio de
“Delta de Vênus”, levou-a a observar que não existia uma tradição de escrita
erótica feminina, fazendo- a concluir que
tinha a
sensação de que a caixa de Pandora continha os mistérios da sensualidade da
mulher, tão diferente da sensualidade do homem e para qual a linguagem do homem
era inadequada. A linguagem do sexo ainda estava para ser inventada. A
linguagem dos sentimentos ainda estava para ser explorada. D H. Lawrence
começou a dar uma linguagem para o instinto, tentou escapar da linguagem
clínica, científica, que captura apenas o que o corpo sente. (NIN: 2006, p. 9)
Diante dessa apresentação
inicial e considerando os pontos que serão discorridos ao longo do artigo, uma
reflexão sobre ascensão dos estudos literários modernos, a relação entre o
cânone e literatura erótica de autoria feminina e um novo modelo interpretativo
de estudos se faz necessária.
2 A ASCENSÃO DOS ESTUDOS DA LITERATURA ANGLÓFONA
Terry Eagleton, no capítulo “A
ascensão do inglês” do livro Teoria
da Literatura: uma introdução, discorre sobre o
surgimento dos modernos estudos da literatura de expressão anglófona. No início
do texto, o autor contrasta a definição atual de literatura com a usada na
Inglaterra do século XVIII. Segundo ele
Na
Inglaterra do século XVIII, o conceito de literatura não se limitava, como
costuma ocorrer hoje, aos escritos “criativos” ou imaginativos. Abrangia todo o conjunto de obras valorizadas pela sociedade: filosofia,
história, ensaios e cartas, bem como poemas. Não era o fato de ser ficção quer
tornava um texto “literário” – o século XVIII duvidava seriamente se viria a
ser literatura a forma recém-surgida do romance – e sim sua conformidade a
certos padrões de “belas letras”. Os critérios do que se considerava literatura
eram, em outras palavras, francamente ideológicos: os escritos que encerravam
os valores os valores e “gostos” de uma determinada classe social eram
considerados literatura, ao passo que uma balada cantada nas ruas, um romance
popular e, talvez mesmo o drama, não o eram. (EAGLETON: 2006, p. 25)
Ou seja, o autor mostra como os valores culturais de
uma sociedade mudam com
o passar do tempo e como isso reflete na compreensão das tendências literárias.
Na Inglaterra do século XVIII, ainda havia os resquícios da predominância do
gosto aristocrático na definição do que era e do que não era literatura. Por
exemplo, para a época, os romances de Daniel Defoe, Jonathan Swift e Henry
Fielding seriam menos “literários” que os ensaios e sátiras de Alexander Pope,
porque esses estariam mais afinados com os valores aristocráticos de arte
ligados a uma “boa escrita” (como o ensaio em versos), enquanto aqueles
representam o nascimento de uma arte mais ligada a burguesia (como é a
narrativa ficcional do romance). Diferente de hoje, que tem na ficção o ponto
base para se avaliar quão literário é ou não um texto, o inglês do século XVIII
julgaria o texto mais pela forma como ele adere ou não aos valores da
aristocracia. Até porque, como prossegue Eagleton, a literatura não fazia
meramente reproduzir certos valores sociais. Antes, ela “era um instrumento
vital para o maior aprofundamento e a mais ampla disseminação desses mesmos
valores” (EAGLETON: 2006, p. 25). O que estava em jogo era se a obra
consolidava as noções de refinamento e do neoclassissismo como “Razão,
Natureza, ordem e propriedade” (EAGLETON: 2006, p. 26), no qual ascendente
classe burguesa (poderosas econômica e politicamente, mas espiritualmente
empobrecidas) se unia a aristocracia ainda governante. A literatura servia como
um importante meio para difunsão de hábitos “corretos” e padrões culturais.
Para tanto, vários instrumentos
ideológicos foram utilizados para consolidar essa tendência:
“periódicos, cafés, tratados sociais e estéticos, sermões, traduções dos
clássicos, manuais de etiqueta e de moral” (ibidem, idem).
Eagleton serve desse cénario para entender o sentido moderno de literatura
como escrita “criativa ou imaginativa”, surgida no século XIX. Já no final do
século XVIII observou-se uma mudança e delimitação no discurso literário, com
uma “reorganização radical na ‘formação discursiva’ da sociedade inglesa”
(EAGLETON: 2006, p. 26), em que, por exemplo, a categoria “poesia” deixou de se
limitar ao conceito de texto em versos para ser entendida mais amplamente como
sinônimo de “criatividade radicalmente contrário à ideologia utilitária do meio
do capitalismo na Inglaterra” (EAGLETON: 2006, p. 26), reestabelecendo a
diferença entre escritos “factuais” (como a notícia de jornal) e “imaginativos”
(como o romance), que já vinha do período romântico. No entanto, o autor
ressalta a ambiguidade que o termo “imaginativo” carrega, pois pode tanto se
resvalar para ver imaginativo como igual o qualitativo “imaginário” (ou seja,
“literalmente inverídico”), como ver
imaginativo no sentido avaliativo de “visionário” ou “inventivo”.
Diante desse ponto, Eagleton analisa o quão singular é esse amálgama
entre literatura como escrita imaginativa que se estabeleceu no romantismo.
Essa singularidade fica mais nítida quando se contrapõe como o termo “prosaico”
ganhou uma conotação negativa, como algo pouco inspirador, monótono e
aborrecido (EAGLETON: 2006, p. 26). Como o autor afirma
Se o que
não existe nos parece mais atraente do que o que existe, se a poesia ou a
imaginação tem posição privilegiada em relação à prosa ou ao “fato concreto”,
parece razoável supor que isso revele alguma coisa significativa sobre os tipos
de sociedade em que os românticos viveram. (EAGLETON: 2006, p. 26)
Eagleton dá a explicação para essa colocação, quando
considera que o período que os românticos viveram foi o das revoluções e
mudanças: o processo de independência nas Américas, a Revolução Francesa e o
período napoleônico (no qual foram postos em cheque a velha ordens colonial ou
feudal pela burguesia); ao mesmo tempo que a Inglaterra vivia sua transformação
econômica como nação capitalista industrial, transformação essa decorrente dos
lucros no comércio de escravos e no controle imperial dos mares. Entretanto, as
utopias visionárias dos românticos se chocaram com a “dura realidade dos novos
regimes burgueses” (EAGLETON: 20006, 27), em que a percepção utilitarista da vida
se tornou a ideologia da classe média industrial, colocando o factual como
fetiche, transformando relações humanas em relações de trocas comerciais e
reduzindo a arte a ponto de um ornamento pouco lucrativo. Isso refletiu na nova
organização social, em que a vida humana se tornava numa espécime de escravidão
assalariada, que alienava a nova classe operária, na medida que rejeitava tudo
aquilo que não podeia se tornar em mercadoria. É dentro desse panorama que a
“literatura” aparece sinônimo de escrita imaginativa, como reação aos valores
celebrados e afirmados pela sociedade inglesa advinda do capitalismo
industrial. Como afirma o autor,
A própria
obra literária passa a ser vista como uma unidade orgânica misteriosa, em contraste
com o individualismo fragmentado do mercado capitalista: ela é espontânea e não
calculada racionalmente, criativa, não mecânica. A palavra poesia, portanto, já
não se refere simplesmente a um modo técnico de escrever: tem profundas
implicações sociais, políticas e filosóficas; ao ouvi-la, a classe governante
pode, literalmente, sacar o revólver. A literatura torna-se uma ideologia
totalmente alternativa, e a própria “imaginação”, como em Blake e Shelley,
torna-se uma fuga política. Sua tarefa é transformar a sociedade em nome das
energias e valores representados pela arte. (EAGLETON: 2006, p. 29)
Ou seja, a fuga da realidade através da literatura,
com narrativas “inventadas” (ainda que verossímeis), longe da representação do
factual, se configurava como um posicionamento político-estético de oposição a
alienação presente no utilitarismo filisteu e mecanicista pregado pela sociedade
capitalista industrial. A arte em geral (e a literatura em particular) aparece
como polo ideológico alternativo no qual os seres humanos possam contestar a
realidade burguesa, apresentando outros valores sociais e servindo até como contestação,
crítica, oposição e resistência ao poder constituído. Mas,
além desse aspecto “militante” da arte em relação à sociedade, Eagleton
apresenta uma outra percepção que essa primazia da imaginação na literatura.
Como o autor observa mais adiante, ao apostar na “soberania e autonomia” do
imaginativo e seu virtual distanciamento para as questões prática da vida, “Se a natureza ‘transcendental’
da imaginação ofereceu um desafio a um racionalismo anêmico, também pôde
oferecer ao escritor uma alternativa confortavelmente absoluta à própria
história” (EAGLETON: 2006, pp. 29-30). Esse distanciamento em relação a
história, no entanto, Eagleton analisa que é uma forma do autor enfrentar a
situação real do escritor romântico, no qual ele é produtor de uma mercadoria
de pouca importância e marginal para uma sociedade que estava pouco disposta em
ouvir profetas a proferir verdades eternas e ser a voz do povo. E estando
totalmente impossibilitado de participar como classe nos movimentos sociais que
buscam transformar capitalismo industrial em um sociedade democrática e
socialmente justa, o escritor se refugia na “solidão de sua própria mente criativa”
(EAGLETON: 2006, p. 30) para idealizar um mundo melhor.
Como consequência dessa clivagem da arte, o autor analisa que a
literatura teve que se voltar em si e usar a própria alienação da vida social a
seu favor. Uma vez que o escritor não se escontrava a soldo de um mecenas, de
uma igreja e de uma corte que o protegesse, o próprio ideal de criação
literária seria usado como motivo de exigência e justificação da literatura. A
estética ressignificou historicamente os objetos (como os poemas e a catedrais),
na medida que a arte separou-se das “práticas materiais, das relações sociais e
dos significados ideológicos com os quais sempre havia se relacionado, e
elevada à condição de um fetiche solitário” (EAGLETON: 2006, p. 32). Isso se
deve ao momento em que a teoria estética estabeleceu como ponto central de sua
investigação, no final da século XVIII, a “doutrina semimística do símbolo”
(ibdem, idem). Segundo o autor,
Para o
romantismo, na verdade, o símbolo torna-se a panacéia de todos os problemas.
Dentro dele, toda uma série de conflitos que na vida comum pareciam insolúveis
– entre o sujeito e o objeto, o universal e o particular, o sensorial e o
conceitual, o mateiral e o espiritual, a ordem e a espontaneidade – podia ser
resolvida num passe de mágica. (EAGLETON: 2006, p. 32).
Com o capitalismo industrial, esses conflitos foram sentidos de forma
mais aguda: com os objetos do sociedade se tornaram mercadorias inertes e sem
vida, distantes dos sujeitos humanos que o produziram ou usavam, tanto o
racionalismo como o empirismo não foram capazes de resolver o divórcio entre o
concreto e o universal. Coube a estética, atráves do símbolo (do qual artefato
literário mantém relação), reuní-los dentro de uma ordem paradoxal, no qual “As
energias dinâmicas e espontâneas do progresso social deviam ser estimuladas,
mas podadas de sua força potencialmente anárquica por uma ordem social
restritiva”. Dessa forma, Eagleton conclui que que a literatura se tornou o
“modelo ideal da própria sociedade humana”
(EAGLETON: 2006, p. 33) durante os séculos XIX e XX, no qual fariam que
as classes sociais inferiores (o proletariado e as minorias) pudessem se unir
em prol da sociedade como um todo e assim refrear a agitação social.
Na medida que a literatura é um tipo de ideologia, por guardar relações
estreitas com o poder social seria o novo cimento social, a substituir a
religião, que oferecia os valores afetivos e as mitologias básicas que uniram a
sociedade inglesa. Eagleton cita a ideia de George Gordon (ex-professor da
Universidade de Oxford), de que a literatura inglesa teria três funções na
modernidade: “ele ainda deve, ao que me parece, nos dar prazer e nos instruir,
mas também, e acima de tudo, salvar nossas almas e curar o Estado” (GORDON apud
EAGLETON: 2006, p. 35). Ou seja, a literatura não teria apenas uma função de
fruição estética da palavra ou de trazer novos conhecimentos ao leitor mediano,
mas também uma espiritual e uma política. Mais adiante, o autor esclarece
principalmente essa função política como forma de se combater o avanços de
políticas socializantes. Citando Matthew Arnold, poeta e crítico literário
britânico da era vitoriana, “Negar aos filhos da classe operária qualquer
participação no imateiral é deixar que se transformem em homens que exigirão,com
ameaças, um comunismo do material” (ARNOLD apud EAGLETON: 2006, p. 37). A
literatura deveria promover a “simpatia e sentimento de identidade” entre as
classes sociais, habituando as massas ao pluralismo (entedido no caso como uma
“aceitação” da ideologia da classe dominante) através de um discurso pautado na
na emoção e na experiência. Nesse ponto que se observa não só importância do
ensino do inglês para a classe operária, visto como um “Clássico dos pobres –
uma maneira de proporcional uma educação ‘liberal’ barata” (EAGLETON: 2006, p.
40), como ascensão do ensino da Literatura nas universidades, na mesma época
que ocorria a admissão lenta e relutante de mulheres nos círculos acadêmicos. Com a Primeira Guerra
Mundial, os estudos de literatura inglesa nas universidades ganharam
importância, na medida que literatura fornecia um consolo para os horrores da
guerra como uma reafirmação da identidade nacional. Nesse ponto, salienta que
os primeiros pesquisadores dessa nova disciplinas já na vinha mais da aristocracia
e da alta burguesia (público que tradicionalmente frequentava as universidades).
Antes, vinham da pequena burguesia provinciana (EAGLETON: 2006, 46), classe que
entravam pela primeira vez nos círculos acadêmicos e encontram na nova
disciplina uma forma de ascensão social. No final da década de 1920 e início da
década de 1930, estudar inglês (principalmente a literatura) era estudar “a
mais importante de todas [as disciplinas], imensamente superior ao direito, à
ciência, à política, filosofia ou história”, uma vez que permitia a uma
“exploração espiritual que equivalia ao destino da própria civilização”
(EAGLETON: 20006, p. 49). É dentro desse contexto que surgem as primerias
escolas de crítica literária, como o grupo da revista Scrutiny, a crítica analítica e o New Cristicim norte-americano.
3 A literatura erótica de autoria feminina e o cânone
literário: Diálogos e Cruzamentos
Como consequência da ascensão do estudos literários está o
estabelecimento de um cânone, de um corpus
de autores que seriam estudados e admirados. Conforme Terry Eagleton assinala,
“a qualidade da linguagem de uma sociedade era o índice mais revelador da
qualidade de sua vida privada e social” (EAGLETON: 2006, p. 48), Disso daí se
pode depreender que não seriam TODOS os escritores que poderiam ser estudados;
antes, um grupo deles teria a primazia de moldar a alma nacional através de
seus escritos, e portanto, teria seus textos analisados e estudados dentro dos
bancos da universidade. Ou como Harold Bloom observa, o cânone, “palavra
religiosa em suas origens, tornou-se uma escolha entre textos que lutam uns com
os outros pela sobrevivência” que seriam legitimados ou pela classe social
dominante, instituições de educação e tradições de críticas ou por autores que
estabelecem uma espécimen de linha sucessoria de “ancestralidade e filiação”
com autores que precederam. (BLOOM: 2010, p. 33).
A afirmação de Bloom traz um ponto nodal para a discussão: quem define ou
legitima o cânone? O que se coloca é que o cânone não se estabelece (apesar de
parecer o contrário) como algo acabado, homogêneo e pronto, que não seja
sujeito a revisão. Tradições diversas de críticas, grupos sociais diversos, diferetntes
instituições de ensino e múltiplas linhagens sucessorias de escritores podem
estabelecer seus cânones particulares e depois fazer a disputa hegemônica
dentro da sociedade, de forma que o Cânone “oficial” aceito pela maioria pode
mudar ao longo do tempo, fazendo que autores antes consagrados caiam no
esquecimento e autores “esquecidos” sejam redescobertos – como pode ver na
afirmação de Alastair Fowler, citador por Bloom: “mudanças de gosto literário
podem muitas vezes estar relacionados a reavaliações de gêneros que as obras
canônicas representam” (FOWLER apud BLOOM: 2010, p. 33-34). Uma vez que o
cânone se estabelece como algo arbitrário, passível de hierarquizações ad hoc, alguns estudiosos da literatura
na atualidade tendem a questioná-lo como elitista e seu estabelecimento como um
ato ideológico em si, propondo sua ampliação
para a entrada outras estilos e autores.
Para o debate sobre o cânone na atualidade, há de se considerar a mudança
de paradigma que Rita Terezinha Schmidt observa, em que a
literatura se dissocia da noção restritiva de arte (como objeto estético
refinado que reflita o gosto de uma classe dominante) para uma visão mais ampla
de cultura. Como ela afirma,
Uma das mais
significativas decorrências dos novos aportes epistemológicos e seus trânsitos
nos estudos literários diz respeito ao deslocamento substancial da definição de
literatura como arte ou objeto estético, para a noção de literatura como
produção estético-escritural, matéria significante situada no domínio da
cultura. Vale lembrar que a divisão entre os domínios da arte e da cultura
nasceu do sistema de diferenciação e classificação dos objetos culturais no
âmbito da cultura ocidental moderna, sistema esse que se consolidou a partir do
século XVIII. Enquanto o termo “cultura” se referia
a práticas
tradicionais de caráter coletivo, o termo “arte” foi associado ao objeto
singularizado pelos processos de criação e sensibilidade individual. Nesse
contexto, se estabeleceu o critério do belo para definir o quadro dos textos
designados como grandes obras. (SCHMIDT: 2008, p. 127).
A pesquisadora observa que essa divisão entre arte/cultura corresponderia
na antiga divisão entre cultura erudita e cultura popular, ou entre alta
cultura e cultura de massa. Mais adiante, ela completa que atualmente há
enfraquecimento
do termo “literário” em seu uso tradicionalmente restritivo, no sentido de “arte”, dependente de uma estrutura de valor
culturalmente específica, e um fortalecimento do sentido antropológico, pelo
qual o literário é integrado à cultura, um campo de produção histórico-social
atravessado por diferentes valores, relações e interesses específicos. (SCHMIDT:
2008, p. 128).
Com isso, e tomando como base as ideias de Jonathan Culler, em Sobre a desconstrução , Schmidt relata a
relação da literatura com as representações culturais, com os modos de
subjetivação e com a construção de identidades e questiona a “imagem do
literário nos cursos de Letras” (SCHMIDT: 2008, p. 129). Essas reflexões ajudam
a entrar no debate de como a literatura erótica de de autoria feminina
se relaciona com o Cânone, uma vez que ela não só está situada à margem do Cânone
literário como apresenta o seu próprio cânone interno. Um caminho que pode ser
utilizado é novo modelo de interpretação, como o proposto por Silviano Santiago no ensaio Análise e Interpretação (2000).
Antes, é preciso enfatizar
essa marginalidade da literatura de escrita feminina. Cecil Zinani (2014),
afirma que:
Entende-se que a
literatura marginal está vinculada à expressão de uma minoria, à
subalternidade, em oposição à arte canônica, que circula na classe dominante.
Nesse sentido, pode ser considerada como literatura marginal aquela produzida
por afrodescentendes e por mulheres, na medida em que buscam modalidades de
representação próprias. (ZINANI, 2014, P.185)
E complementa:
Na realidade, o sujeito
feminino foi, ao longo da história, considerado subalterno, sendo objeto do
discurso, jamais sujeito. Ao
apropriar-se da palavra, a mulher procurou transformar as representações que
traduziam o ponto de vista masculino, constituindo-se em sujeito e elaborando
representações próprias, de acordo com sua história e suas especificidades, ou
seja, gendradas. Com base nessas reflexões, pretende-se discutir alguns
aspectos da escritura feminina, considerando a categoria literatura marginal (idem,
p.186, grifos nossos)
No caso, o que se pode
depreender é que a literatura de autoria feminina encontra-se a margem da
produção do Cânone e que, portanto, se estabeleceu como subalterna. Deste modo,
tem buscado um modo próprio de expressão de sua identidade, mudando os modos de
representações e tornando-se o sujeito da escrita, no o objeto. Essa forma de
expressão reside no que Robin Lakoff
chama de “bilinguismo feminino” – além do um “dialeto” próprio das mulheres e
de uso particular, teria que usar a norma “neutra”, para uso corrente nas relações
sociais. Entretanto, essa apropriação de que fala
Zinani, vai ao encontro do que reflete Constância Lima Duarte (1997)
ao afirmar que a única modalidade de texto não praticado pelas mulheres foi
justamente a crítica literária (1997, p.58). Como consequência, a “legitimação”
dessa literatura foi feita, por muitos anos, pelos homens. Diante disso, Duarte
assevera:
Uma rápida pesquisa revela
como essa crítica masculina de até meados do século [XX] via um texto de mulher
e assinala a recorrência de algumas posições, como a atribuição de um estatuto
inferior à mulher escritora (com raras excessões); o constragimento em apreciar
textos escritos por mulheres; a recomendação de formas literárias mais
“adequadas” à “sensibilidade feminina”, como os romances sentimentais e os de
confissão psicológicas; a surpresa diante da representação da figura masculina
em determinados textos, em tudo diferente do esterótipo do homem viril, forte e
superior dos escritos de autoria masculina; e da denúncia de uma certa tendência
das mulheres confundir vida pessoal com literatura, o que levou, inclusive,
alguns criticos a afirmar que as escritoras pareciam incapazes de se afastar da
experiência vivida para entrar no ponto de vista, na psicologia e na linguagem
de um outro (DUARTE: 1997, p.58)
Como se pode observar, a
leitura realizada pelos homens trouxe uma olhar enviesado e cheio de
estereótipos para a análise das obras literárias de autoria feminina. Ao
reduzir essa produção ao “feminino”, ao aspecto biologista ou construção
histórico-social dessa produção, os críticos literários masculinos mascaravam o
valor que essas obras de autoria feminina poderiam ter. Um exemplo desse tipo
de análise pode ser encontrado em Alexandrian, na sua obra História da Literatura Erótica. No início do capítulo sobre a produção
erótica feminina, ao considerar que ela tem origens imprecisas e
desenvolvimento tardio, justifica que as mulheres teriam um erotismo menos
cerebral, de onde se pode depreender que teria menos capaz de convertê-las em
ideias e imagens (ALEXANDRIAN: 1993, p. 279)
Apesar dessa afirmação
inicial, Alexandrian organiza nesse capítulo um rascunho do cânone da
literatura erótica de autoria feminina. No que pese o corpus de todo o livro ter se limitado basicamente às literaturas
francesa e italiana (com algumas referências na produção grega e bizantina da
antiguidade e do medievo) – o que coloca muitas autoras de outros países no
limbo desse gênero literário – o autor elenca alguns nomes de destaque.
Partindo de Safo de Lesbos, na Grécia antiga, ele estabelece uma linhagem que
passa pelas escritoras lésbicas na Paris de 1900, segue por Colette, Anaïs Nin,
Pauline Reage, Emanuelle Arsan até o que ele chamará de “Inferno do Feminismo”:
Christiane Rochefort e Viollete Leduc.
Esse cânone proposto por
Alexandrian reforça o foi dito inicialmente sobre o caráter arbitrário e
hierarquizado. Ele mostra a literatura erótica de autoria feminina está em um
nível diferente da produção erótica de autoria masculina (Da mesma forma como a
própria literatura erótica é tida como rebaixada perante a literatura dita
séria – e, portanto, excluído do Cânone [MUZART: 1997, p. 81]).
Cabe trazer essa produção para dentro dos estudos acadêmicos, de forma a criar
uma fortuna crítica e ampliar o horizonte da crítica cultural na área das
Letras e Artes. É nesse ponto que um modelo pós-estruturalista de interpretação
pode ser útil, por trazer uma metodologia que abra mais a pesquisa literária
nas universidades.
4 MODELO PÓS-ESTRUTURALISTA DE INTERPRETAÇÃO e os
textos eróticos de anais nin.
Em contraposição ao modelo estruturalista de análise, Silviano Santiago
contrapõe o modelo pós-estruturalista da interpretação. Ele considera que a
análise estruturalista, baseada nos fundamentos científicos da linguística,
negligenciava a intertextualidade. Concepções ainda não exploradas pelo
estruturalismo começavam a ser gestadas para dar conta a estudos como o das
obras completas de um autor, estudos esse que, mesmo formados por um conjunto
de textos que possuem algo em comum, se exprimem de forma separada e em diálogo
entre si.
Nesse ponto, três conceitos se escrevem para guiar o modelo
pós-estruturalista de interpretação: diferença, transgressão e contradição.
Por diferença, entende-se como começar
a pensar a instância de articulação de um texto sobre outro(s). Não
mais são considerados os textos isoladamente, ou como pertecentes a um único modelo
do mesmo, mas como se diferenciando
na repetição, como um diálogo entre o mesmo e o outro (SANTIAGO: 2000, p. 208)
No caso, entende-se que a diferença é caminho pelo qual se faz o
exercício da intertextualidade. No caso do estudo literário, os textos não se
decompõe isoladamente em pedaços particulares ou reduzidos a uma fôrma padrão.
Antes, são vistos em conjunto, traçando diálogos entre si e/ou com os demais
campos do conhecimento. Por exemplo, o estudo dos contos que compõe o livro Delta de Vênus não seriam vistos em
separado e desmontados em seus elementos, como dialogando entre si e com outros
campos, como a a História (ou caso, ver como esses contos se enquadram dentro
dos “Agitados Anos 20” do século XX), com a Psicanálise (principalmente se
considerado que eles foram escrito no momento que a autores da época estavam
descobrindo os princípios de Freud), etc.
Por transgressão, pode se entender como um processo de revaloração que se
contrapõe a uma ordem estabelecida (no caso, a uma cultura dominante). Na
interpretação, a transgressão se estabelece para questionar os valores que
fundamentam um estudo, trazendo a tona outros que possam norteá-lo. Silviano
Santiago observa como exemplo a apropriação de Oswald de Andrade de trechos da Carta de pero Vaz de Caminha, no qual os
poemas oswaldianos se estabelecem como questionamentos aos “valores da cultura
portuguesa, ocidental, branca e cristã” (SANTIAGO: 2000, p. 209). Isso também
se aplicaria ao estudo dos contos eróticos de Anaïs Nin. Se a literatura
erótica em si já se estabelece-se como um contraponto valorativo a dita
“literatura séria e canônica” – e como tal, posto a margens nos estudos
literários, a literatura erótica de autoria feminina se coloca como a margem da
margem, uma vez que é escrita por uma mulher e que põe em xeque-mate os valores
patriarcais que dominam a sociedade ocidental.
Já a contradição, esta se afirmaria
Pela diferença (e não por uma simples síntese), ela existe como
conceito operacional, pois é ela que pode dar conta deste criar pela
destruição, deste
destruir pela criação, que mais e mais significa (estamos descobrindo um pouco
tarde) o espírito moderno (2000, p. 209)
Ou seja, a contradição não se limitaria a uma mera operação dialética
escrita na fórmula “tese mais antítese igual a síntese”. A contradição, como
meio operacional, já traz dentro do se bojo a sua afirmação e a sua negação. É
o próprio meio em que se estabelece o diálogo que ocorre pelo conceito da
diferença.
Silviano Santiago traz a contribuição de Deleuze e Derrida para a mudança
de paradigma quanto ao modelo teórico de investigação nas ciência humanas, na
medida em que ambos resgatam do limbo filosófico as categorias do discurso
teórico da área. (que fora operacionalizado pelas então recentes descobertas da
linguística). Embora haja diferenças, eles concordam que o discurso das
ciências humanas deveriam ter um estatuto de ambiguidade. Isso significa que ultrapassar
o velho modelo que circunscrevia-as a segmentos estanques e da prisão
positivista de se encarar as ciências dentro do paradigma das ciências exatas,
o que levaria a uma visão fechada de resultados – como acontecia com o
estruturalismo.
Eles estão dentre as pessoas que começaram a fazer a releitura do
estruturalismo através da releitura de outros filósofos, como Nietzsche. Por
exemplo, foi por meio do contacto do discurso nietzschiano sobre a linguagem
(em paralelo a meditação sobre Freud) que serão colocados três problemas: a) O
da verdade e de sua relação com linguagem (ou seja, do estatuto de validade
lógica de uma sentença e de como essa validade é expressa), b) O da
interpretação (ou seja, de um novo paradigma de estudo e investigação) e c) O
da genealogia (ou seja, a da origem). Dentre esses problemas, o da Genealogia
se inscreve com maior interesse porque era de central importância para
Nietzsche (se se remeter à origem) e foi relegado a segundo plano ou mal
interpretado pelos estruturalistas como um “começo”. Para tanto, a questão é
colocada como sendo que “Genealogia quer dizer ao mesmo tempo valor de origem e
origem dos valores. Genealogia opõe-se ao caráter absoluto dos valores com o
seu caráter relativo ou utilitário” (DELEUZE apud SANTIAGO: 2000, p. 212).
Nesse ponto, a Genealogia é a forma que se operacionaliza o conceito de
transgressão citado anteriormente.
Como outro ponto para se entender o modelo de interpretação, Silviano
Santiago comenta a redefinição de signo dentro do pensamento nietzschiano.
Citando Foucault, Santiago observa que
percebemos desde o início que o signo e a linguagem não estão isentos
de uma “avalização” por parte do intérprete ou do genealogista. Já no Livro do Filósofo (1872-1873), Nietzsche
interpelava o “princípio de razão” que se repousava numa continuidade entre a linguagem e as coisas, num acordo pacífico e
incondicional entre elas, proporcionando então ao pensador a “ilusão” de que a
linguagem podia ser a expressão adequada de todas as realidades (SANTIAGO: 2000,
p. 213)
O que essa citação coloca é que já não pode caber na investigação um
único discurso ou forma discursiva que detenha o monopólio da explicação da
realidade. No modelo estruturalista de análise, essa forma discursiva que age
de modo imperialista reside na linguagem científica, formata dentro de padrão
lógico herdado de Aristóteles e da Matemática. Na sua “exatidão”, ela traz a
ilusão de que pode abarcar toda uma cosmovisão da realidade. O que a
interpretação traz é a possibilidade de utilizar outras formas discursivas que
também possam explicar a realidade, como no caso de se utilizar os próprios
textos literários como potências teóricas que tragam cosmovisões paralelas as
das ciências. Mais adiante, Silviano retoma Nietzsche para explicar que o ato
de nomear é um ato de autoridade do homem – principalmente dos que dominam. “O
homem impõe uma e sua interpretação e um e seu valor, quando
utiliza criativamente a linguagem” (SANTIAGO: 2000, p. 214).
Nesse ponto, após essas considerações, Santiago aponta os “dois
princípios diretores da interpretação, segundo Michel Foucault”: 1) Ela é uma
tarefa infinita. Ou seja ela não cessa em si e que nunca se completa porque não
há nada de primeiro a ser interpretrado. 2) Tudo já é interpretação. Ou seja,
ela se volta para si mesma, formando um movimento circular que definirá o
movimento do conhecimento humano. Mais adiante, o pesquisador observa ainda que
a interpretação é polissêmica, o que daria a impossibilidade de “dar conta da
‘totalidade”, o que levaria a se reconsiderar os conceito clássico de estrutura
(SANTIAGO: 2000, p. 215).
Assim, o modelo pós-estruturalista de interpretação se mostra melhor para
uma investigação da literatura por ser mais amplo na obtenção dos resultados.
Não se limitaria a um conjunto fechado de leituras rigidamente definidas. Antes,
permite ampliar as possibilidades de estudos, abrindo para uma perpectiva crítico-cultural
de explicação da realidade.
4.1 A INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS ERÓTICOS DE ANAÏS NIN
Conforme foi visto no tópico acima, o modelo pós-estruturalista de
interpretação, quando aplicado à investigação literária (principalmente no que
se relaciona à investigação da literatura erótica de autoria feminina), conduz
a resultados mais amplos e profícuos – mormente quando contrastada com o modelo
estruturalista de análise.
Pelo modelo de análise, a leitura dos contos eróticos de Anaïs Nin (como
no caso de “Marianne” e “Manuel”, presentes no livro Delta de Vênus) seria feita pela
decomposição dos elementos dos contos (personagens, narrador, tempo, local,
etc) para depois reconstruir como estrutura de simulacros que, em última
análise, reduziram-nos ao esquema de explicação fechado sobre o processo do
voyeurismo feminino / exibicionismo masculino. Já na interpretação, que é por
definição infinita e holística, os textos supracitados seriam investigados pela sua diferença. Mesmo que em ambos os
contos exista o resíduo da história de um homem cujo prazer se dá pelo exibição
pública de sua genitália, eles seriam lidos entre si pela sua diferença – em “Marianne”, o exibicionismo ocorre na
relação entre o casal Marianne e Fred, como se pode ver no seguinte trecho: “Eu
estava realmente atormentada pelo desejo. Mas um homem daquele tipo está
interessado apenas em que eu olhe
para ele.” (NIN: 2006, p. 89), enquanto em “Manuel”, o exibicionismo do personagem
título é anônimo, como pode ser ver a seguir:
Manuel desenvolvera uma forma peculiar de se satisfazer que fizera sua família
repudiá-lo, de modo que ele vivia como um boêmio em Montparnasse. (…) Mais cedo
ou mais tarde, Manuel tinha de abrir a braguilha das calças e exibir seu membro
gigantesco.
Quanto maior fosse o número de pessoas que testemunhasse a cena,
melhor. Se estava entre pintores e modelos, esperava que todos estivessem um
tanto babados e mais alegres, e então se despia por completo. Seu rosto
ascético e sonhador, seus olhos poéticos e seu corpo de monge faziam um
contraste tão grande com seu comportamento, que não havia quem não se
espantasse. Se virassem o rosto, desviando os olhos, Manuel não sentia prazer.
Mas se o olhassem, por um segundo que fosse, ele caía em uma espécie de transe,
seu rosto ficava extático e logo ele rolava pelo chão em uma crise de orgasmo.
(NIN: 2006, p. 255)
E essa leitura pode ser ampliada para além das fronteiras da literatura –
na medida que se pode dialogar esses contos com a psicanálise freudiana – no
caso, relacionar o exibicionismo / voyeurismo presente nos textos de Anaïs Nin
com a conclusões que Freud tem em relação ao fetichismo, especialmente sobre o
sentimento de castração provocado pela vista dos órgãos genitais femininos,
quando se compara a reação de Fred logo quando vai morar com Marianne em que “Fred mudou-se
para o estúdio. Mas, como Marianne explicou, ele não progrediu além da
aceitação de suas carícias. Deitavam-se nus na cama, e Fred agia como se ela
absolutamente não tivesse sexo” (NIN: 2006, p. 92). Isso
dialoga com com a reflexão de Freud no texto O Fetichismo, em que ele afirma que “provavelmente a nenhum
indivíduo humano do sexo masculino é poupado o susto da castração à vista de um órgão genital
feminino” (FREUD: 1996, p. 157) e que isso redunda na
criação de um fetiche por parte de algumas pessoas (não todas). Dessa forma, a
interpretação abre o leque de entendimento que possa ter sobre os contos
eróticos de autoria feminina (como os são os de Anaïs Nin), ao permitir que
múltiplas leituras possam ser estabelecidas no textos: leitura biográfica,
leitura psicanalítica, leitura sociológica, etc.
Nessa ampliação do campo de leituras dada pelo modelo pós-estruturalista
da interpretação cabe uma compreensão melhor sobre o próprio objeto de pesquisa
que é o estudo da literatura erótica de autoria feminina. A análise, que se
baseia em campo fechado de resultado, pode levar também a um fechamento e
hierarquização dos elementos de estudos das estruturas. Assim, no objeto
“Literatura”, “a “Literatura Erótica” é vista como elemento menor, se comparada
com a Literatura dita “Séria” ou “Superior” do Cânone. E, ainda, corre-se o
risco de reduzir dos objetos distintos (as narrativas eróticas de autora
masculina e as narrativas eróticas de autoria feminina) em um único modelo
ideal dado a priori ou a um único
exemplo levantado como modelo teórico universal. No caso do modelo da
interpretação, as hierarquias de elementos tendem a desaparecer. A relações são
vistas de forma rizomática, sem um centro que defina o bom e o ruim. A
Literatura Erótica será estudada pela suas diferenças, transgressões e
contradições, pelas suas potencias como forma de uma crítica da cultura e do
erotismo. Narrativas de autorias masculina e feminina não seriam homogeneizadas
– antes, serão interpretadas pela sua différance
no qual a literatura de autoria feminina é o Outro que dialoga entre si e com a
literatura de autoria masculina. E, no caso da narrativa erótica feminina, ela
se estabelece como uma trangressão valorativa (bem a moda nietzschiana) e
questionamentos dos princípios fundamentais do patriacalismo da sociedade
ocidental. Como bem diz Anaïs Nin na introdução do livro de Delta de Vênus, no momento que ela
começou a escrever seus contos eróticos, observou que havia a predominância da
voz masculina nesse tipo de literatura (NIN: 2006, p. 13). Faltava um modelo feminino
de como escrever sobre o sexo – ainda que fosse nítida a forma prática como
homens e mulheres se diferenciavam no trato sobre a sexualidade, como a autora
cita no prefácio: “Embora a atitude das mulheres em relação ao sexo fosse
bastante diferente da dos homens, ainda não havíamos aprendido como escrever
sobre isso” (ibidem, idem).
5 considerações finais
Diante do exposto ao longo do artigo, pode-se observar
primeiramente como a ascensão dos modernos estudos literários da língua inglesa
influenciou na formação do cânone. Estabelecido como um novo cimento ideológico
que pudesse unir as classes sociais na Inglaterra nos séculos XIX e XX, fornecendo
principalmente ao povo uma educação liberal mais barata e promovesse a
cooperação de classe, os estudos do Inglês (língua e literatura) selecionaram
uma série de autores e textos anglófonos que servissem para a formação da
identidade nacional, criando assim um cânone que pudesse se tornar como
referência. Como consideração marginal, pode se notar a instrumentalização
política do patrimônio linguístico-cultural para a organização social. Para uma
pesquisa futura, seria bom observar se esse processo descrito por Eagleton também
se realizou em outros Estados.
Contudo, o que se observa é que o cânone não se
apresenta como um corpo monolítico, imutável e homogêneo. Antes, seria melhor falar em “cânones” no
plural, uma vez que ele possuem hierarquizações ad hoc e diversas fontes legitimadoras (grupos sociais, instituições de ensino, tradições de crítica e linhagens espirituais de
escritores e escritoras) que disputam entre si quais autores e textos possuem a
primazia na educação estética e afetiva das massas. Como consequência dessa
disputa, observa-se a formação de um centro, onde estão a nata literária no
qual gravitam periferias de autores, gêneros, estilos e movimentos artísticos,
que ora dialogam, ora divergem entre si. Esse movimento dialético ganha mais força
quando se estuda a literatura não na perspectiva restritiva de belas-letras
(cuja literariedade fosse algo dado a priori e essencialista), mas na visão
mais ampla de cultura (em que os textos literários são parte de produto estético do fazer
humano). Nesse ponto, um campo de estudo que se mostra promissor é o da
literatura erótica de autoria feminina, uma literatura que se encontra
duplamente marginal dentro do cânone: seja por trabalhar o tema do erotismo dentro
da arte, que é tido como rebaixado diante
de temas mais “nobres”; seja pela sua autoria, que são as mulheres, que
culturalmente estiveram relegadas a um posição subalterna na sociedade patriarcal.
EAGLETON, Terry. A ascensão do inglês. In: EAGLETON,
Terry. Teoria literária. Uma
Introdução. 6ª ed.. Tradução Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
pp. 25-82.
BLOOM, Harold. Uma Elegia para o Cânone. In: BLOOM,
Harold. O cânone ocidental. Tradução
Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. pp. 27-62.
Diante dessa situação que Zilda de Oliveira Freitas aponta
como o dilema das escritoras está entre “utilizar o discurso masculino é pôr em
risco sua feminilidade. Não utilizá-lo é expor-se ao ridículo, ao falar em
público” FREITAS, Zilda Oliveira de. A literatura de autoria feminina. In:
FERREIRA, Silvia Lucia e NASCIMENTO, Enilda Rosendo de (org). Imagens da mulher na cultura contemporânea.
Salvador: NEIM/UFBA, 2002. Coleção Bahianas v.7, pp 115-123.
DUARTE, Constância Lima. O Cânone e a Autoria
Feminina. In: SCHMIDT, Rita Terezinha (org). Mulheres e literatura. (trans)formando identidades. Porto Alegre:
Palloti, 1997. pp 53-60.
ALEXADRIAN. A literatura erótica feminina. In:
ALEXADRIAN, História da literatura
erótica. 2ª Ed. Tradução Ana Maria Scherer e José Laurênio de Mello. Rio de
Janeiro: Rocco, 1993.
MUZART, Zahidé Lupinacci. A Questão do Cânone. In:
SCHMIDT, Rita Terezinha (org). Mulheres e
literatura. (trans)formando identidades. Porto Alegre: Palloti, 1997. pp
53-60.
NIN, Anaïs. Manuel. In: NIN, Anaïs. Delta de vênus. Tradução Lúcia Brito.
Porto Alegre: L&PM, 2006. Coleção L&PM Pocket.
FREUD, Sigmund. O Fetichismo (1927). In: FREUD,
Sigmund. Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud, edição standard
brasileira Vol. XXI. O Futuro de uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e
outros trabalhos (1927-1931). Tradução José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de
Janeiro: Imago, 1996. pp. 151-160