Os fabliaux
de H. Hilst: Análise de alguns poemas do livro “Bufólicas”
Bufólicas, de Hilda
Hilst, é uma coletânea de sete poemas narrativos em versos brancos e livres
(com predomínio de redondilhas). Foi lançada em 1992 como uma reunião de
poesias satíricas (a integrar o conjunto de livros "obscenos" que
marcaram a produção literária de Hilda Hilst) que retomam o universo dos contos
de fadas, para recontá-las dentro de uma perspectiva erótico-cômica. E tais quais
as fábulas, os textos encerram com uma “moral” resultante e irônica.
O
próprio título do livro Hilda Hilst indica o caráter em que se deve ler a obra:
Bufólicas forma-se como um trocadilho com as palavras Bucólica e Bufo.
Ou seja, já no início da leitura, nas quatro primeiras letras do título, está
indicado para onde a autora quer levar: o lado do riso, do grotesco, da ironia.
É como se um bufão entrasse no reino dos contos de fadas para perverter estas
narrativas, virar pelo avesso a inocência infantil das histórias para instalar
o carnaval dos sentidos, trazendo o que há de mais profano dentro dele. E na
complementação do título, a autora já começa pregando uma peça do leitor: embora
a palavra “bucólica” remeta a idéia de ambiente rural, ela não indicará um caminho da simplicidade e leveza que esta palavra “bucólica” geralmente é
associada. Antes, ela remete aos fabliaux[1] do
medievo francês, as narrativas curtas em versos octossílabos em que os vilões
(moradores de vilas) são retratados comicamente em uma linguagem normalmente
obscena, desnudando a estultice e a inocência destes vilões. Este clima de brincadeira
maliciosa e ferina é reforçado com a epígrafe, o adágio latino Ridendo castigat mores.
Numa
primeira leitura, “inocente”, poderia se depreender que Hilda Hilst voltou sua
carga aos contos de fadas. Dois dos poemas narrativos são calcados em histórias
clássicas: “A Chapéu”, cujos personagens da trama são paródias de “Chapeuzinho
vermelho”, e “A cantora gritante”, em que são feitas referências às histórias da
“A cigarra e a formiga”, de “Branca de Neve” e ao mito de Orfeu. Nos demais
poemas os personagens se remetem a tipos universais destas histórias: a fada bondosa,
a maga/bruxa má, o anão grotesco, o reizinho e a rainha, etc. Contudo, Hilda
Hilst lhes atribui características e/ou situações de sexualidade grotesca,
desviante, perversa – sensualidade vulgar que acaba provocando risos, bem ao
gosto da tradição das fabliaux. Como lembra Alcir Pécora, no prefácio a
segunda edição do livro, “As personagens são as de sempre, no gênero (…). O que
muda é que todas são portadoras de anomalias nas genitálias e praticantes de
grau diversos de bizarrias[2]”. Destes
poemas, dois terão análise mais acurada neste trabalho: “A Cantora Gritante” e
“A Chapéu”.
Em
“A Cantora Gritante”, Hilda Hilst monta a narração amalgamando elementos de
outras histórias cujo tema é a inveja. A protagonista da história chama-se
Garganta Alva e destacava-se pela sua voz afinada e imaculada (presumidamente
de soprano): “cantava tão bem / subiam-lhe as oitavas / tantas tão claras / na
garganta alva[3]”. Tal
era o encanto da voz da protagonista que provocava inveja nas mulheres da
vizinhança, na medida em que deixavam seus maridos muitos excitados sexualmente
todas as noites. Para tanto, elas resolvem calar a rival, maculando sua
garganta com o “nabo” do jumento Fodão.
De
Garganta Alva, Hilda Hilst apenas descreve sua voz, sempre usando palavras do
campo semântico da Brancura: alva, clara. Esta escolha remeteria a figura da
Branca de Neve dos irmãos Grimm. Também, pelo exercício da arte de cantar, se
faz semelhante tanto a Cigarra das fábulas de Esopo e La Fontaine como ao herói
grego Orfeu. Em contraposição, as mulheres das vizinhanças, que são descritas pela
sua feiúra física: são mulheres “gordas consortes (…) curvadas, claudicantes /
de xerecas inchadas[4]”. Deduz
que estas mulheres seriam donas-de-casa, árduas formiguinhas em seus afazeres
domésticos.
A
ligação com a história da Branca de Neve também se verifica por ambas serem
invejadas pelo seu encanto natural. Porém, a protagonista de “A cantora
gritante” não gozará da mesma sorte da princesa do conto de fada. Tão pouco
terá o desprezo da Cigarra, esfomeada durante o inverno. Será trágico (ou o
quanto se pode ser trágico numa ópera-bufólica) como Orfeu, com o silenciamento
forçado.
Brancura
(imaculada?) inicialmente usada na descrição da protagonista ser contraposta
por Hilda Hilst através da ambientação do clímax da história com palavras do
campo semântico oposto: “certa noite… de muita escuridão / De lua negra e
chuvas[5]”. E
será perto do toco negro que a ação do “silenciamento forçado” da
protagonista ocorre – Garganta Alva terá sua garganta estuprada (e maculada)
pelo “nabo” de um jumento chamado Fodão.
Novamente
Hilda Hilst brinca com as palavras e passa uma rasteira no leitor desatento: O
jumento possui o nome do aumentativo. Deduz então que sua anatomia animalesca
será proporcional ao seu nome, ou antes, desproporcional à sua vítima. Também
se deduz que a Garganta Alva não é versada nas artes profundas da atriz Linda
Lovelace…
Esta
cena de bestialismo que encerra a narração também não deixa de mostra o jogo
irônico utilizado pela autora. Se, através do mito de Orfeu, a música foi
consagrada como meio para domar e acalmar bestas-fera (como Orfeu fez com as
sereias e a Cérbero[6]), aqui,
não só a música foi o ponto de partida da discórdia como fez que as mulheres da
vizinhança mostraram-se mais cruéis, quase como foram, ao dilacerar Orfeu, as bacantes.
Na
história “A Chapéu”, Hilda Hilst promove uma inversão dos pólos: se nas tramas
originais de Perrault e dos Irmãos Grimm, o Lobo é um predador ativo e
malicioso, masculino, que se opõem a dupla Vovó / Chapeuzinho Vermelho,
presas passivas e inocentes, femininas; na recriação de Hilda Hilst,
Lobão é explorado pela Avó Leocádia e sua neta Chapéu.
Se
nos contos originais, a avó é desprovida de nome e comporta-se como uma
personagem secundária, na narrativa de Hilst ela quem domina a situação. Sua
posição já se encontra no nome: Leocádia. Leo, a Leoa, a líder, a rainha
soberana em torno da qual gravitam as demais personagens. Apesar de não nomear
a história, é ela quem primeiro aparece poema: “Leocádia era sábia”. Está
sabedoria é que a fará explorar Lobão, tanto financeiramente (agindo como
proxeneta, como se pode depreender na reclamação “Pois da última vez / Lobão
deu pra três / E eu não recebi o meu quinhão![7]”)
como sexualmente (como deixa subentendido ao final do poema, quando ela
responde: “Às vezes te miro / E sinto que tens um nabo / Perfeito para meu
buraco[8]”).
Já
a neta de Leocádia é conhecida pelo seu apelido, Chapéu (sem o característico
diminutivo e a cor vermelha). Se também não teria uma inocência infantil, como
se observa nos versos “De vermelho só tinha a gruta / E um certo mel na língua
suja[9]”,
ela fica surpresa quando descobri o caso da avó com o personagem masculino,
como se lê nos versos “AAAAII! Grita Chapéu / Enganaram-me! Vó Leocádia / E
Lobão / Fornicam desde sempre / Atrás do meu fogão[10]”.
Em
oposição ao par Chapéu/Leocádia, o personagem do lobo perde seu epíteto de mau
e é chamado apenas de Lobão, estabelecendo uma ironia entre um nome do
aumentativo e uma posição bem diminuta dentro do poema narrativo. Sem entrar na
cena, é descrita pela Vó Leocádia como “uma bichona peluda” que serve de
ganha-pão da dupla[11],
que vai ser reforçada na reclamação já citada. Sua aparição mais “concreta” na ocorrerá
na segunda metade do poema. Em contraste com o vocabulário chulo das duas
personagens femininas, ele mostra uma linguagem mais afetada e um vocabulário
quase parnasiano[12]. Ele
claramente é posto como presa ante as duas, pelo comentário dele, presente nos
versos “E por que tens, ó velha / Os dentes agrandados / Pareces de mim um
arremedo!”, invertendo a ordem do diálogo clássico do conto de fadas.
Alcir
Pécora, na introdução do livro, definiu o livro Bufólicas como “um
exercício de estilo[13]”.
Hilda Hilst exercita e atualiza o estilo das paródias fesceninas, do realismo
mágico dos contos de fadas e das fabliaux, extraindo da (considerada)
‘baixa matéria-prima’ do erotismo já fronteiriço com a pornografia, pequenas
pérolas de literatura e humor.
.
Referências
Referências
ANÔNIMO. Pequenas fábulas medievais. Fabliaux dos séculos XIII e
XIV. Estabelecimento do texto, tradução para o francês moderno e seleção de
Nora Scott. Tradução para o português de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins
Fontes, 1995. (Coleção Gandhära).
BULFINCH, Thomas. Mitologia geral. A idade da fábula. Tradução de
Raul L.R. Moreira e Magda Veloso. Belo Horizonte: Itatiaia, 1962. (Coleção
Descoberta do mundo, vol. 21).
COMMELIN, Pierre. Mitologia grega e romana. 2. ed. Tradução de
Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1997. (Coleção Clássicos).
ESOPO. A Cigarra e as Formigas. In ESOPO. Fábulas. Tradução de
Pietro Nassetti. São Paulo: Martins Claret, 2005. (Coleção A obra-prima de cada
autor, vol. 182).
GRIM, Jacob e GRIM, Wilhelm. Branca de Neve. In GRIM, Jacob e GRIM,
Wilhelm. Contos de grimm vol 1. A Bela Adormecida e outras história. Tradução
de Zaida Maldonado. Porto Alegre: L&PM, 2010. (Coleção L&PM Pocket, vol.
256)
GRIM, Jacob e GRIM, Wilhelm. Branca de Neve. In Contos de Fadas:
de Perrault, Grimm, Andersen & outros. Apresentação de Ana Maria Machado.
Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
HAMILTON, Edith. Mitologia. Tradução de Jefferson Luiz Camargo.
São Paulo: Martins Fontes, 1992.
HILST, Hilda. Bufólicas. 2. ed. São Paulo: Globo, 2009. (Coleção
Obras Reunidas de Hilda Hilst).
LA FONTAINE. A Cigarra e a Formiga. In LA FONTAINE. Fábulas. Vários
tradutores. 3. ed. São Paulo: Martins Claret, 2008. (Coleção A obra-prima de
cada autor, vol. 200).
MÉNARD, René. Mitologia greco-romana. Tradução de Aldo Della
Nina. São Paulo: Opus, 1991. 3 V.
PERRAULT, Charles. Branca de Neve. In Contos de Fadas: de
Perrault, Grimm, Andersen & outros. Apresentação de Ana Maria Machado.
Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
WILKINSON, Philip. Myths & legends. An
illustrated guide to their origins and meanings. Londres / Nova York / Munique
/ Melbourne / Delhi: Dorling Kindersley, 2009.
[1] Fabliau (plural fabliaux) são
pequenos poemas narrativos com versos de fundo cômico ou galante. Floresceu na
França Medieval, entre os séculos XIII e XIV.
[2] PÉCORA, Alcir. Nota do
organizador. IN HILST, Hilda. Bufólicas. 2. ed. São Paulo: Globo, 2009.
(Coleção Obras Reunidas de Hilda Hilst). p. 8
[3] HILST, Hilda. A Cantora
Gritante. IN HILST, Hilda. Bufólicas.
2. ed. São
Paulo: Globo, 2009. (Coleção Obras Reunidas de Hilda Hilst). p. 29
[5] Idem, p. 30
[6] Conforme relatam Pierre
COMMELIN, Edith HAMILTON, Philip WILKINSON, Thomas BULFINCH e René MENARD em
seus livros sobre mitologia clássica.
[7] HILST, Hilda. A Chapéu. IN HILST, Hilda. Bufólicas. 2. ed. São Paulo: Globo, 2009.
(Coleção Obras Reunidas de Hilda Hilst). p. 23
[13] PÉCORA, Alcir. Nota do
organizador. IN HILST, Hilda.
Bufólicas. 2. ed. São Paulo: Globo, 2009. (Coleção Obras Reunidas de Hilda Hilst). p. 8
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