um
modelo interpretativo de crítica cultural para o estudo da literatura erótica de autoria feminina
José
Ricardo da Hora Vidal [1]
1
Introdução
O objetivo desse artigo é discutir um método interpretativo de crítica
cultural para os estudos dos contos eróticos de Anaïs Nin, a partir das ideias
de Silviano Santiago, expressas no ensaio “Análise
e Interpretação”, publicada na obra Uma
Literatura nos Trópicos. O trabalho se dividirá em três momentos: 1) Discutir
conceito estruturalista de análise e a sua limitação para a investigação
literária. 2) Discutir a diferença entre a o modelo pós-estruturalista de
interpretação expresso por Deleuze, Nietzsche e Derrida e como ele amplia o
campo de pesquisa da literatura. 3) Mostrar como o modelo interpretativo pode
ser aplicado à análise dos contos eróticos de autoria feminina, tendo como
exemplo os textos de Anaïs Nin. Finalmente, serão feitas as considerações finais.
Para uma melhor compressão do trabalho, faz necessário conhecer Anaïs
Nin, escritora de expressão anglófona do início do século XX que se notabilizou
pelos seus diários e escritos eróticos. Vivendo nos loucos anos 20 e casada com
Hugh Parker Guiller, manteve uma vida sentimental bem movimentada, datando
desta época o affair com o casal June
e Henry Miller. E, foi através do seu amante (escritor de verve erótica), que
ela começou a escrever os contos eróticos que viriam a formar os volumes “Delta
de Vênus” (2006) e “Pequenos Pássaros” (2007) e no poema em prosa “A Casa do
Incesto” (1991).
Na gênese de seus contos, Anaïs Nin conta que os escreveu inicialmente
por encomenda de um colecionador anônimo, pagando um dólar a página e exigindo
apenas que nos contos fosse cortada a poesia e ficasse apenas “o sexo clínico,
privado de toda a calidez do amor – a orquestração de todos os sentidos, toque,
audição, visão, paladar” (NIN: 2006, p. 8)[2]. Este fato, como ela conta no prefácio de
“Delta de Vênus”, levou-a a observar que não existia uma tradição de escrita
erótica feminina, fazendo- a concluir que
tinha a sensação de que a
caixa de Pandora continha os mistérios da sensualidade da mulher, tão diferente
da sensualidade do homem e para qual a linguagem do homem era inadequada. A
linguagem do sexo ainda estava para ser inventada. A linguagem dos sentimentos
ainda estava para ser explorada. D H. Lawrence começou a dar uma linguagem para
o instinto, tentou escapar da linguagem clínica, científica, que captura apenas
o que o corpo sente. (NIN: 2006, p. 9)
Diante dessa apresentação inicial e
considerando os pontos que serão discorridos ao longo do artigo, uma reflexão
entre o modelo estruturalista de análise e o modelo pós-estruturalista de
interpretação se faz necessário.
2
MODELO ESTRUTURALISTA DE ANÁLISE
Silviano Santiago apresenta, no referido ensaio, dois modelos a serem
aplicados nos estudos literários: o modelo estruturalista da análise e o modelo
pós-estruturalista da interpretação.
Ele caracteriza que a análise “pressupõe e supõe um trabalho bifásico, às
vezes sucessivo, às vezes paralelo, em que, de um lado, um processo primeiro de
decomposição do objeto de estudo molda-se, por outro lado, a processo de
recomposição que explica ou explicita o significado do objeto” (2000: p.
200-201). Ou seja, análise parte de um processo de divisão e dissecação
dicotômica do objeto para reagrupá-lo em um novo todo que explique-o. Mais
adiante, Silviano Santiago considera que a análise é
antes de mais nada, um exercício de superposições de lógicas diferentes
– diferentes, entendemos antes o termo: falando a mesma coisa, em níveis diferentes. As figuras representativas de
uma determinada forma de organização existente casualmente no objeto de estudo devem suceder figuras de uma lógica
formal capaz de englobar, em seu
racionalismo, essa organização casual e de ajuntar ao objeto um simulacro
(complemento e superposição, portanto) de nova ordem, que explicita melhor que
a primitiva organização o verdadeiro e profundo significado do objeto (2000, p.
201, grifos do autor)
Compreende-se então que o processo de análise faz com que o objeto de
pesquisa seja dividido em segmentos estanques que serão estudados segundo as
faces de um prisma. Salienta-se que é o mesmo objeto, mas visto por perspectiva
diferente no qual um lado ganha relevo. Como consequência, esse conjunto de
perspectivas organizadas que se apresentam casualmente seriam ordenados como se
obedecessem uma lógica formal sucessiva e simultânea já existente e que
envolveria tanto o conjunto de qualidades como o próprio objeto em um simulacro
(ou seja, uma representação de nova ordem) que explicaria melhor, mais
verdadeira e profundamente o próprio objeto – tornando explícito o que estava
anteriormente implícito. Por exemplo, uma análise literária do conto Marianne[3], de Anaïs Nin, implicaria
em decompor a estória em seus elementos como tempo, ação, foco narrativo,
personagens, etc, para depois reagrupá-los em um novo texto crítico que
explicaria o conto.
Esses dois processos são o que Roland Barthes chama de découpage e agencemet. Haveria primeiro uma desmontagem do objeto de estudo em
estruturas para depois ocorrer o seu rearranjo, no qual, a síntese surgida
desse processo não apresenta como cópia, mas como um “simulacro”, uma “fabricação
verdadeira de um mundo que se assemelha ao primeiro, não para copiá-lo, mas
para o torná-lo inteligivel” (BARTHES apud SANTIAGO: 2000, p. 202). Disso,
Santiago aponta que a análise é definida por três movimentos: desmontagem,
arranjo e simulacro; no qual a ação estruturalista se define reconstruir o
objeto de forma tal que, na reconstrução, as “regras de funcionamento (as
‘funções’)” do objeto venham à superfície. E o pesquisador processe, observando
que a modelo estruturalista da análise acaba ecoando as ideias de Vladimir
Propp em a Morfologia do Conto Maravilhoso,
em que a estrutura dos contos seria um “jogo de constantes e variáveis”, no
qual algumas partes são modificáveis (as personagens) e outras não (as ações ou
funções)[4]. Sobre o simulacro,
Santiago continua citando Barthes, mostrando que no simulacro da análise ocorre
uma operação no objeto, no qual haveria um “acréscimo semântico (…) de valor
metafísico”: o inteligível se uniria ao sensível., no qual “um complentava o
outro e vice-versa” (SANTIAGO: 2000, p. 202)
A essa concepção barthesiniana da análise, é acrescentada ao que Gerard
Genette tem sobre a crítica literária como bricolage
– no caso, a crítica literária seria uma análise mais refinada que se
estabelece como um metadiscurso. Contudo, observa-se que para o bricoleur, seu universo instrumental é
fechado. No caso, o que difere o objeto do simulacro está expresso na “passagem
de um conjunto instrumental dado a um conjunto a se realizar” cuja diferença
está na disposição interna das partes. Ou seja, na bricolage, cada elemento da análise se estabele em um duplo
estatuto: é ao mesmo tempo concreto e virtual, situado a meio caminho entre o o
que é inteligível e o que é sensível – tal qual o signo é o meio do caminho
entre o significante e o significado.
Tanto em relação à concepção de Barthes sobre recomposição por simulacro
como a Genette sobre bricolage,
Silviano Santiago considera que ambos tratam de
levantar os vários elementos significativos e constituintes do objeto
"natural", dar a esses elementos um duplo estatuto (sensível e
inteligível, significante e significado), po-los em movimento, analisando o
mecanismo interno de funções ou o jogo relacional entre os elementos no
interior do objeto (2000, p. 204)
Nesse caso, o fim da análise estruturalista é compreender o todo, que
estaria cerrado artificiosamente em dicotomias formais, o que levaria uma visão
bidimensional da realidade.
A essa altura, percebe-se que o modelo estruturalista da análise se
apresenta como um método limitado. Ao se preocupar em conhecer o todo atráves
das dicotomias fechadas em si, é levado a um conjunto fechado de resultados.
Nesse ponto, a análise se restringe a dois postulados teóricos: o processo de
reconstituição do objeto de estudo se reduz ou a reprodução de um exemplo único
que se apresenta como matriz teórica, ou a um modelo teórico ideal estabelecido
a priori e estabelecido em base
“científicas” (no sentido positivista da palavra)[5]. Em ambos os casos, o
conhecimento do todo não se segue a um conhecimento mais aprofundando. Em lugar
de se chegar ao “porquê” do objeto, fica-se limitado a uma série sequencial de
“como?” circunscrito a uma “lógica dicotômica e rígida, binária” (SANTIAGO:
2000, p. 205). Como consequência, os resultados obtidos por qualquer um dos
postulados acima citados (principalmente se ligados ao estudos literários)
estariam iluminados sobre por uma luz opaca. No caso, a explicação se limitaria
ao “fechamento do(s) texto(s)” analisados, não se preocupando em vê-lo(s) quer
na sua diferença, quer indo além do que se apresenta. Ou seja, não há a différance derridiana, que se estabele
como um “momento anterior a toda a diferenciação, a toda conceituação binária,
antecena portanto da metafísica ocidental” (SANTIAGO: 2000, p. 206)
3
MODELO PÓS-ESTRUTURALISTA DE INTERPRETAÇÃO
Em contraposição a esse modelo, Silviano Santiago contrapõe o modelo
pós-estruturalista da interpretação. Ele considera que a análise
estruturalista, baseada nos fundamentos científicos da linguística,
negligenciava a intertextualidade. Concepções ainda não exploradas pelo
estruturalismo começavam a ser gestadas para dar conta a estudos como o das
obras completas de um autor, estudos esse que, mesmo formados por um conjunto
de textos que possuem algo em comum, se exprimem de forma separada e em diálogo
entre si.
Nesse ponto, três conceitos se escrevem para guiar o modelo
pós-estruturalista de interpretação: diferença, transgressão e contradição.
Por diferença, entende-se como começar
a pensar a instância de articulação de um texto sobre outro(s). Não
mais
são considerados os textos isoladamente, ou como pertecentes a um único modelo
do mesmo, mas como se diferenciando
na repetição, como um diálogo
entre o mesmo e o outro (2000, p. 208)
No caso, entende-se que a diferença é caminho pelo qual se faz o exercício
da intertextualidade. No caso do estudo literário, os textos não se decompõe
isoladamente em pedaços particulares ou reduzidos a uma fôrma padrão. Antes,
são vistos em conjunto, traçando diálogos entre si e/ou com os demais campos do
conhecimento. Por exemplo, o estudo dos contos que compõe o livro Delta de Vênus não seriam vistos em
separado e desmontados em seus elementos, como dialogando entre si e com outros
campos, como a a História (ou caso, ver como esses contos se enquadram dentro
dos “Agitados Anos 20” do século XX), com a Psicanálise (principalmente se
considerado que eles foram escrito no momento que a autores da época estavam
descobrindo os princípios de Freud), etc.
Por trangressão, pode se entender como um processo de revaloração que se contrapõe
a uma ordem estabelecida (no caso, a uma cultura dominante). Na interpretação,
a trangressão se estabelece para questionar os valores que fundamentam um
estudo, trazendo a tona outros que possam norteá-lo. Silviano Santiago observa
como exemplo a aprorpiação de Oswald de Andrade de trechos da Carta de pero Vaz de Caminha, no qual os
poemas oswaldianos se estabelecem como questionamentos aos “valores da cultura
portuguesa, ocidental, branca e cristã” (SANTIAGO: 2000, p. 209). Isso também
se aplicaria ao estudo dos contos eróticos de Anaïs Nin. Se a literatura
erótica em si já se estabelece-se como um contraponto valorativo a dita
“literatura séria e canônica” – e como tal, posto a margens nos estudos
literários, a literatura erótica de autoria feminina se coloca como a margem da
margem, uma vez que é escrita por uma mulher e que põe em xeque-mate os valores
patriarcais que dominam a sociedade ocidental.
Já a contradição, esta se afirmaria
Pela diferença (e não por uma simples síntese), ela existe como
conceito operacional, pois é ela que pode dar conta deste criar pela
destruição, deste
destruir pela criação, que mais e mais significa (estamos descobrindo um pouco
tarde) o espírito moderno (2000, p. 209)
Ou seja, a contradição não se limitaria a uma mera operação dialética
escrita na fórmula “tese mais antítese igual síntese”. A contradição, como meio
operacional, já traz dentro do se bojo a sua afirmação e a sua negação. É o
próprio meio em que se estabelece o diálogo que ocorre pelo conceito da diferença.
Silviano Santiago traz a contribuição de Deleuze e Derrida para a mudança
de paradigma quanto ao modelo teórico de investigação nas ciência humanas, na
medida em que ambos resgatam do limbo filosófico as categorias do discurso
teórico da área. (que fora operacionalizado pelas então recentes descobertas da
linguística). Embora haja diferenças, eles concordam que o discurso das
ciências humanas deveriam ter um estatuto de ambiguidade. Isso significa que ultrapassar
o velho modelo que circunscrevia-as a segmentos estanques e da prisão
positivista de se encarar as ciências dentro do paradigma das ciências exatas,
o que levaria a uma visão fechada de resultados – como acontecia com o
estruturalismo.
Eles estão dentre as pessoas que começaram a fazer a releitura do
estruturalismo através da releitura de outros filósofos, como Nietzsche.
Por exemplo, foi por meio do contacto do discurso nietzschiano sobre a
linguagem (em paralelo a meditação sobre Freud) que serão colocados três
problemas: a) O da verdade e de sua relação com linguagem (ou seja, do estatuto
de validade lógica de uma sentença e de como essa validade é expressa), b) O da
interpretação (ou seja, de um novo paradigma de estudo e investigação) e c) O
da genealogia (ou seja, a da origem). Dentre esses problemas, o da Genealogia
se inscreve com maior interesse porque era de central importância para
Nietzsche (se se remeter à origem) e foi relegado a segundo plano ou mal
interpretado pelos estruturalistas como um “começo”. Para tanto, a questão é colocada
como sendo que “Genealogia quer dizer ao mesmo tempo valor de origem e origem
dos valores. Genealogia opõe-se ao caráter absoluto dos valores com o seu
caráter relativo ou utilitário” (DELEUZE apud SANTIAGO: 2000, p. 212). Nesse
ponto, a Genealogia é a forma que se operacionaliza o conceito de transgressão
citado anteriormente.
Como outro ponto para se entender o modelo de interpretação, Silviano
Santiago comenta a redefinição de signo dentro do pensamento nietzschiano.
Citando Foucault, Santiago observa que
percebemos desde o início que o signo e a linguagem não estão isentos
de uma “avalização” por parte do intérprete ou do genealogista. Já no Livro do Filósofo (1872-1873), Nietzsche
interpelava o “princípio de razão” que se repousava buma continuidade entre a linguagem e as coisas, num acordo pacífico e
incondicional entre elas, propocionando então ao pensador a “ilusão” de que a
linguagem podia ser a expressão adequada de todas as realidades (2000, p. 213)
O que essa citação coloca é que já não pode caber na investigação um
único discurso ou forma discursiva que detenha o monopólio da explicação da
realidade. No modelo estruturalista de análise, essa forma discursiva que age
de modo imperalista reside na linguagem científica, formata dentro de padrão
lógico herdado de Aristóteles e da Matemática. Na sua “exatidão”, ela traz a
ilusão de que pode abarcar toda uma cosmovisão da realidade. O que a
interpretação traz é a possibilidade de utilizar outras formas discursivas que
também possam explicar a realidade, como no caso de se utilizar os próprios
textos literários como potências téoricas que tragam cosmovisões paralelas as
das ciências. Mais adiante, Silviano retoma Nietzsche para explicar que o ato
de nomear é um ato de autoridade do homem – principalmente dos que dominam. “O
homem impõe uma e sua interpetação e um e seu valor, quando
utiliza criativamente a linguagem” (2000, p. 214).
Nesse ponto, após essas considerações, Santiago aponta os “dois
princípios diretores da interpretação, segundo Michel Foucault”: 1) Ela é uma
tarefa infinita. Ou seja ela não cessa em si e que nunca se completa porque não
há nada de primeiro a ser interpretrado. 2) Tudo já é interpetação. Ou seja,
ela se volta para si mesma, formando um movimento circular que definirá o
movimento do conhecimento humano. Mais adiante, o pesquisador observa ainda que
a interpretação é polissêmica, o que daria a impossibilidade de “dar conta da
‘totalidade”, o que levaria a se reconsiderar os conceito clássico de estrutura
(2000, p. 215).
Assim, o modelo pós-estruturalista de interpretação se mostra melhor para
uma investigação da literatura por ser mais amplo na obtenção dos resultados.
Não se limitaria a um conjunto fechado de leituras rigidamente definidas. Antes,
permite ampliar as possibilidades de estudos, abrindo para uma perpectiva
crítico-cultural de explicação da realidade.
4
A INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS ERÓTICOS DE ANAÏS NIN
Conforme foi visto no tópico acima, o modelo pós-estruturalista de
interpretação, quando aplicado à investigação literária (principalmente no que
se relaciona à investigação da literatura erótica de autoria feminina), conduz
a resultados mais amplos e profícuos – mormente quando contrastada com o modelo
estruturalista de análise.
Pelo modelo de análise, a leitura dos contos eróticos de Anaïs Nin (como
no caso de “Marianne” e “Manuel”, presentes no livro Delta de Vênus) seria feita pela
decomposição dos elementos dos contos (personagens, foco narrativo, tempo,
local, etc) para depois reconstruir como estrutura de simulacros que, em última
análise, reduziram-nos ao esquema de explicação fechado sobre o processo do
voyeurismo feminino / exibicionismo masculino. Já na interpretação, que é por
definição infinita e holística, os textos supracitados seriam investigados pela sua diferença. Mesmo que em ambos os
contos exista o resíduo da história de um homem cujo prazer se dá pelo exibição
pública de sua genitália, eles seriam lidos entre si pela sua diferença – em “Marianne”, o exibicionismo ocorre na
relação entre o casal Marianne e Fred, como se pode ver no seguinte trecho: “Eu
estava realmente atormentada pelo desejo. Mas um homem daquele tipo está
interessado apenas em que eu olhe
para ele.” (NIN: 2006, p. 89)[6], enquanto em “Manuel”, o exibicionismo do personagem
título é anônimo, como pode ser ver a seguir:
Manuel desenvolvera uma forma peculiar de se satisfazer que fizera sua família
repudiá-lo, de modo que ele vivia como um boêmio em Montparnasse. (…) Mais cedo
ou mais tarde, Manuel tinha de abrir a braguilha das calças e exibir seu membro
gigantesco.
Quanto maior fosse o número de pessoas que testemunhasse a cena,
melhor. Se estava entre pintores e modelos, esperava que todos estivessem um
tanto babados e mais alegres, e então se despia por completo. Seu rosto
ascético e sonhador, seus olhos poéticos e seu corpo de monge faziam um
contraste tão grande com seu comportamento, que não havia quem não se espantasse.
Se virassem o rosto, desviando os olhos, Manuel não sentia prazer. Mas se o olhassem,
por um segundo que fosse, ele caía em uma espécie de transe, seu rosto ficava
extático e logo ele rolava pelo chão em uma crise de orgasmo. (NIN: 2006, p.
255) [7]
E essa leitura pode ser ampliada para além das fronteiras da literatura –
na medida que se pode dialogar esses contos com a psicanálise freudiana – no
caso, relacionar o exibiscionismo / voyeurismo presente nos textos de Anaïs Nin
com a conclusões que Freud tem em relação ao fetichismo, especialimente sobre o
sentimento de castração provocado pela vista dos órgãos genitais femininos,
quando se compara a reação de Fred logo quando vai morar com Marianne em que “Fred mudou-se
para o estúdio. Mas, como Marianne explicou, ele não progrediu além da
aceitação de suas carícias. Deitavam-se nus na cama, e Fred agia como se ela
absolutamente não tivesse sexo[8]” (NIN: 2006, p. 92). Isso
dialoga com com a reflexão de Freud no texto O Fetichismo, em que ele afirma que “provavelmente a nenhum
indivíduo humano do sexo masculino é poupado o susto da castração à vista de um órgão genital
feminino” (FREUD: 1996, p. 157) e que isso redunda na criação de um fetiche por
parte de algumas pessoas (não totdas). Dessa forma, a interpretação abre o
leque de entendimento que possa ter sobre os contos eróticos de autoria feminina
(como os são os de Anaïs Nin), ao permitir que multiplas leituras possam ser
estabelecidas no textos: leitura biográfica, leitura psicanalítica, leitura
sociológica, etc.
Nessa ampliação do campo de leituras dada pelo modelo pós-estuturalista
da interpretação cabe uma compreensão melhor sobre o próprio objeto de pesquisa
que é o estudo da literatura erótica de autoria feminina. A análise, que se
baseia em campo fechado de resultado, pode levar também a um fechamento e
hieraquização dos elementos de estudos das estruturas. Assim, no objeto
“Literatura”, “a “Literatura Erótica” é vista como elemento menor, se comparada
com a Literatura dita “Séria” ou “Superior” dos autores consagrados. E, ainda,
corre-se o risco de reduzir dos objetos distintos (as narrativas eróticas de
autora masculina e as narrativas eróticas de autoria feminina) em um único
modelo ideal dado a priori ou a um
único exemplo levantado como modelo teórico universal. No caso do modelo da
interpretação, as hierarquias de elementos tendem a desaparecer. A relações são
vistas de forma rizomática, sem um centro que defina o bom e o ruim. A
Literatura Erótica será estudada pela suas diferenças, trangressões e
contradições, pelas suas potencias como forma de uma crítica da cultura e do
erotismo. Narrativas de autorias masculina e feminina não seriam homogeneizadas
– antes, serão interpretadas pela sua différance
no qual a literatura de autoria feminina é o Outro que dialoga entre si e com a
literatura de autoria masculina. E, no caso da narrativa erótica feminina, ela
se estabelece como uma trangressão valorativa (bem a moda nietzschiana) e
questionamentos dos princípios fundamentais do patriacalismo da sociedade
ocidental. Como bem diz Anaïs Nin na introdução do livro de Delta de Vênus, no momento que ela
começou a escrever seus contos eróticos, observou que havia a predominância da
voz masculina nesse tipo de literatura (2006, p. 13). Faltava um modelo feminino
de como escrever sobre o sexo – ainda que fosse nítida a forma prática como
homens e mulheres se diferenciavam no trato sobre a sexualidade, como a autora
cita no prefácio: “Embora a atitude das mulheres em relação ao sexo fosse
bastante diferente da dos homens, ainda não havíamos aprendido como escrever
sobre isso” (NIN: 2006, p. 13)[9].
5
considerações finais
Como pode ser observado ao longo do artigo, o modelo estruturalista de
análise se mostra problemático para o estudo da literatura erótica de autoria
feminina, na medida que ele restringe os resultado e as leituras possíveis e
enxega os textos em totalizações redutoras a partir da desmontagem em elementos
menores estanques, sem maiores diálogos entre textos e campos de saberes. Como
contraponto a esse modelo, opta por se trabalhar com o método interpretativo do
pós-estruturalismo na medida em que ele abarca uma gama maior de leituras e
resultados, além de possibilitar o diálogo do objeto de estudo com outros
objetos e campos de saberes.
No caso da estudo da literatura erótica de autoria feminina (tomando como
exemplo a produção literária de Anaïs Nin), o método de interpretação torna-se
quase obrigatório para que se possa fazer uma leitura crítico-cultural desse
fenômeno. Pela interpretação, fica mais fácil desnudar os valores patriacais
que subjazem na sociedade ocidental, fazendo que o texto erótico de Anaïs Nin
se torne a potência de uma teoria alternativa que rasure a sexualidade, ao
mostrar a perspectiva feminina sobre o erotismo - como ela cita no pós-escrito do prefácio:
Naquele tempo em que estávamos todos escrevendo sobre erotismo a um
dólar a página, dei-me conta de que por séculos tínhamos tido um único modelo
para esse gênero literário, ou seja: trabalhos escritos por homens. Eu já era
então consciente da diferença entre o tratamento masculino e o feminino para
com a experiência sexual. Sabia que havia grande disparidade entre a clareza de
Henry Miller e as minhas ambigüidades. (…) Conforme escrevi no volume três do
Diário, eu tinha a impressão de que a caixa de Pandora continha os mistérios da
sensualidade feminina, tão diferente da do homem e para a qual a linguagem
masculina era inadequada. (2006, p. 13)
[10]
Essa perspectiva, por sua vez, é trazida para discussão na medida em que
ao se discorrer sobre literatura erótica feminina a visão que se tem seja
sempre aquela perpassada pelo olhar masculino.
Pensa-se, aos moldes de Przybylski (2014) – e mesmo considerando que a
análise da pesquisadora é voltada para a análise das narrativas orais,
periféricas, tão à margem quanto as narrativas eróticas de autoria feminina -
que
cabe a nós, pesquisadores do campo dos
estudos literários , apostarmos em novos
narradores, que possuam uma vasta produção e não estejam necessariamente na
academia. É preciso abrir o olhar
para produções narrativas não-acadêmicas, mas que podem intervir no meio,
tendo, assim, um olhar científico sobre as narrativas orais que, apesar de
influenciadas por toda forma de progresso, persistem como uma necessidade
estética entre aqueles que escutam e transmitem. (2014, p.190, grifos nossos)
Assim, e partir
de tudo que aqui estudamos, podemos concluir que a literatura erotica muitas
vezes é produzida por autoras (mulheres) que, embora estejam na academia, tem
seu espaço à margem. A escrita erótica feminina é, por sua vez, vista como não
acadêmica, na medida em que a sociedade patriarcal considera o homem como único
capaz de externar os desejos femininos. Esse olhar cientifico de que fala a
autora precisa ser aplicado também às escritas eróticas femininas que, além de
uma necessidade estética àqueles que escutam e transmitem, são as que mais
podem legitimar esses saberes, na medida em que transimitem o que é genuino e
não o que é imaginado/idealizado.
referências
ALEXADRIAN. A literatura erótica feminina.
In: ALEXADRIAN, A história da literatura
erótica. 2ª Ed. Tradução Ana Maria Scherer e José Laurênio de Mello. Rio de
Janeiro: Rocco, 1993.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil face. Tradução Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento,
2007.
FREUD, Sigmund. O Fetichismo (1927). In: FREUD,
Sigmund. Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud, edição standard
brasileira Vol. XXI. O Futuro de uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e
outros trabalhos (1927-1931). Tradução José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de
Janeiro: Imago, 1996. pp. 151-160
NIN, Anaïs. A casa do incesto e outras histórias. Tradução Angela Melin. Rio de
Janeiro: Record: Rosa dos Ventos, 1991.
__________. Manuel. In: NIN, Anaïs. A fugitiva. Tradução Haroldo Netto e
Lúcia Brito. Porto Alegre: L&PM, 2012. Coleção 64 páginas.
__________. Delta de Vênus. Tradução Lúcia Brito. Porto Alegre: L&PM, 2006.
Coleção L&PM Pocket.
__________.
Delta of Venus. Londres/Nova York:
Penguin Book, 1990.
__________. La casa dell’incesto. 6ª ed. Tradução Maria Caronia. Milão: Giangiacomo
Feltrinelli Editore, 2008. Coleção Universale Economica Feltrinelli.
__________.
Little Birds. Londres/Nova York:
Penguin Book, 1990.
__________. Pequenos Pássaros. Tradução Haroldo Netto. Porto Alegre: L&PM,
2007. Coleção L&PM Pocket.
PROPP, Vladimir I. O conto como totalidade.
In: PROPP, Vladimir I. Morfolofia do
Conto Maravilhoso. Tradução Jasna Paravich Sarhan. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1984. pp. 85-106
PRZYBYLSKI, Mauren Pavão. Das materialidades da literatura: a
reinvenção da vida e acervo das narrativas orias urbano-digitais.
2014. f.209 Tese (Doutorado em Letras) –
Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
SANTIAGO, Silviano. Análise e Interpretação.
In: SANTIAGO, Silviano. Uma literatura
nos trópicos: Ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000. pp 200-217.
[1] Mestrando em Crítica Cultural
pela UNEB – campus II. Especialista em Estudos Linguísticos e Literários pela
UFBA. E-mail: ricardovidal@hotmail.com.br.
[2] No original em inglês “Clinical sex, deprived of all
the warmth of love – the orchestration of all the senses, touch, hearing,
sight, palate”, (NIN: 1990, p. ix). Fato contestado por Alexandrian, no seu livro “História da
Literatura Erótica” (1994, p. 307): “estou convencido que o colecionador não existiu. Era um mito inventado por Anaïs Nin a
partir de um mexerico de Henry Miller, um mito que lhe serviu de álibi para
assumir sem culpabilidade seus fantasmas sexuais”. Mais adiante no texto, Alexandrian cita
Elizabeth Hardwick, afirmando que Anaïs Nin possuía “um apetite patológico para
mistificação” e observam-se ou semelhanças entre uma psicanálise de grupo com
as sessões de trabalho de Anaïs Nin e seus amigos na produção destas estórias
eróticas a serem enviadas ao colecionador.
[3] O conto, parte do livro Delta de
Vênus, é a estória da relação fetichista entre Marianne (pintora que também
datilografava os textos eróticos de Anaïs Nin) e Fred (rapaz cujo fetiche era
se exibir nu).
[4] Como pode ser observado da
definição de PROPP (1984, p. 85) para o conto de magia: “Do ponto de vista
morfológico podemos chamar de conto de magia a todo desenvolvimento narrativo
que, partindo de um dano (A) ou de uma carência (a) e passando por funções
intermediárias, termina com o casamento (W0) ou outras funções
utilizadas como desenlance. A função final pode ser a recompensa (F), a
obtenção do objeto procurado ou, de modo geral, a reparação do dano (K), o
salvamento da perseguição (Rs), etc”.
[5] Como exemplo desse processo de
redução, poder-se-ia considerar a obra “O
Herói de Mil Faces”, de Joseph Campbell, quando esse descreve o monomito.
Em resumo, todas as narrativas míticas seriam reduzidas a um único modelo
esquemático de jornada do herói. O mesmo se pode ver em Vladimir I Propp, na
obra “Morfologia do Conto Maravilhoso”.
[6]
No original em inglês “I was actually tormented with desire. But a man like
that, he is only interessed in my looking
at him”, (NIN: 1990, p. 58)
[7]
No original em inglês: “Manuel had developed a peculiar form of enjoyment that
caused his family to repudiate him, and he lived like a Bohemian in
Montparnasse, (…) Sooner or later Manuel had to open his pants and exhibit his
rather formidable member.
The more
people there were, the better. The more refined the party, the better. If he
got among the painters and models, he undressed himself completely. His ascetic
face, dreamy and poetic eyes and lean monklike body were so much in dissonance
with his behavior that it started everyone. If they turned away from him, he
had no pleasure. If they looked at him for nay time at all, then he would fall
into a trance, his face would become ecstatic, and soon he would be rolling on
the floor in a crisis of orgasm.” (NIN: 1990, p. 191)
[8]
No original em inglês “Fred moved into the studio. But, as Marianne explained,
he not progress from the acceptante of her caresses. They lay in bed, naked,
frenziedly, and Fred acted as if she had no sex at all”,
(NIN: 1990, p. 61)
(NIN: 1990, p. 61)
[9]No
original em inglês: “but although women’s attitude towards sex was quitte
disctint from that of men, we had not yet learned how to write about it” (NIN:
1990, p. xiii). Para
esta declaração, contrastar com o juízo de ALEXANDRIAN (1994, p. 279) no seu
estudo sobre a história da literatura erótica, que no seu capítulo sobre a
produção feminina, observa que as mulheres produziram poucos textos eróticos por
que o “erotismo das mulheres” é “muito menos cerebral que os homens”…
[10]
No original em inglês: “At the time we were al writing erotica at a dollar a
page, I realized that for centuries we had had only one model for this literary
genre – the writing of men. I was already conscious of a difference between the
masculine and feminine treatment of sexual experience. I knew that there was a
great disparity between Henry Miller’s explicitness and my ambiguities. (…) As
I wrote in Volume III of the Diary, I
had a feeling that Pandora’s box contained the mysteries of woman’s sensuality,
so different from a=man’s and for which man’s language was inadequate” (NIN:
1990, p. xiii)
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