Vitivinicultura Literária
Tempo & Criação Literária
Tempo & Criação Literária
Senhoras e
senhores, boa noite para todos.
Minha
contribuição nessa távola redonda talvez não possa ter uma aplicação imediata
numa oficina de criação literária, mas (creio eu) poderá dar mais clareza aos
que, saindo daqui, pretendam continuar no caminho da escrita criativa. Gostaria
de falar sobre o Tempo dentro do
processo de criação literária, mas exatamente como ele interfere na avaliação e
na escrita em direção ao texto final.
O senso
comum, ainda embebido de uma herança romântica, coloca o texto literário como
algo que nasce pronto sob alguma inspiração sobrenatural. É como se fosse uma espécimen
de psicografia, em que um “daimon” advindo de outros éons possuísse nosso corpo
e mente para escrever ou então um anjo ou orixá ditasse o poema ou o romance já
pronto e acabado. Mas, o bom senso aponta para uma outra direção – o texto
nasce, a priori, como um eterno devir,
um rascunho em que se vislumbra alguma coisa que só será perceptível mais
adiante. E para se chegar nela, o escritor precisa que a razão crítica haja sobre
o texto com frieza a fim de observar como este vai amadurecendo. E para que
isso aconteça, é necessário usar o fator tempo.
Pessoalmente,
sempre imaginei o exercício da literatura como algo mais próximo da produção do
vinho. Nos parreirais do idioma colhem as palavras e as frases para serem prensadas
no tanque branco da página (ou na tela, se pensarmos nos computadores) e assim formar
o mosto/texto. Depois, são deixadas fermentando e decantando sozinhas. Convém que
o escritor profissional periodicamente retorne aos seus textos, burile onde for
preciso, e, principalmente, acompanhe essa fermentação, a fim de ver em que
situação está sua obra. Penso nisso porque os textos (pelo o que pude tirar de
minha experiência), normalmente seguem três caminhos:
01) Alguns
textos viram vinagres porque não resistiram a prova do tempo. Mesmo que, na
hora da composição ele realmente emocione, no outro dia (ou na outra semana, ou
ainda, meses e anos depois) eles já não encontre ressonância n’alma. Mostram-se
por demais ingênuos ou meramente vazios, ainda que retorne a eles e os emendem.
Aliás, não é bom realmente mexê-lo: praticamente seria necessário escrever um
novo texto, mais apurado, substituindo esse. Não prestam para publicação e
inexoravelmente o seu destino é o lixo ou o fundo esquecido de uma gaveta.
02) Outros
textos ainda não envelheceram o suficientemente bem. São textos difíceis, com
um forte travo do tanino e que tendem a se confundir com os textos avinagrados
acima citados: não estão maduros a ponto de serem publicados. Contudo, isso não
quer dizer que seja um texto para ser descartado, pois trazem algo que pertube
na leitura, pois nasceu póstumo. Ele ainda guarda surpresas, é um texto
indomado, o qual (talvez) até precise de duas ou três emendas, algumas correções
necessários a fim de que possa sair redondo na página do livro. É um texto cuja
leitura, por parte do escritor, precisa ser mais bem digerida antes de mandar
servir aos leitores – digestão essa que pode ser longa o suficiente a ponto de
o texto vir a lume pelas mãos de um pesquisador que, tendo acesso ao arquivo do
escritor, o encontre e o publique em uma edição póstuma de obras completas ou
em uma edição crítica.
03) E, last but not least, há os textos que
estão prontos para serem engarrafados. Venceram a prova do tempo e a leitura
ainda inebria com facilidade, não restando dúvidas ao escritor de que já se
pode entregar aos seus leitores. É o que quase não precisa de aparos nas
arestas e que o escritor oferece ao público.
Contudo,
qualquer que seja o destino desse texto, sobre ele foi necessário sofre a ação
do tempo, o que torna o ofício da escrita criativa um processo de escrever,
reescrever, fundir, cortar, ler, reler, recortar, corrigir, aumentar e
(auto)criticar constantemente. E se a pessoa tiver interesse em publicar suas
obras, saberá que periodicamente serão feitas triagens em cima de triagens,
leituras em cima de leituras.
Isso se faz
necessário, pois o primeiro momento da escrita nós somos traído pela emoção. Seja
porque o texto surgido em uma única rajada da pena, seja porque foi preciso
muito sangue-suor-e-lágrimas para terminá-lo, a impressão que muitos tem é que
o texto está perfeito. Todas as ideias estão devidamente concatenadas, a
linguagem apresenta-se soberbamente como nós desejávamos, não há nenhum senão a
ser corrigidos. Inconscientemente, pode ser que estamos apenas cansados demais em
continuar o trabalho e precisando de uma pausa, por isso temos tendemos a achar
que o resultado está bom. Mas muito dificilmente isso ocorre. Então é saudável
que o escritor se distancie dele por um momento (minutos ou anos, dependendo do
caso) para retornar a ele e escrever.
É nesse
momento, nessa RE-visão, nesse RE-torno, nessa RE-tomada é que os defeitos e
virtudes começam a vir a tona. É uma vírgula que foi engolida ou uma frase que
precisa ser reescrita. Ou sentir se o texto ainda consegue bater na alma de
algum modo. Esse é o processo da “fermentação literária”, o do distanciamento
necessário para que o escritor possa desenvolver sua autocrítica em relação ao
escrito, a fim de se perceber a sua evolução. Não basta apenas pisar e repisar
nas palavras no papel para achar que o texto já está para ser engarrafado – é preciso
que o tempo também aja sobre ele, que haja essa fermentação necessária para se
extrair a essência de uma nova sonoridade, de uma nova sintaxe, de um novo
sentido, de uma nova forma de expressão, qualquer coisa que mexa na língua e
cause o famoso “estranhamento” pregado pelos formalistas russos. Como
consequência dessa tese, percebe-se que a “fermentação” não servirá apenas para
aparar pequenas arestas (como erros ortográficos ou para apurar as frases e os
parágrafos). É através desse processo que o texto ganha sua integridade como
obra de arte – que servirá de marco para a separação entre o escriba diletante
e o escritor profissional candidato a figurar na história.
Ao comparar
a produção do vinho com a do texto, eu percebo a importância do fator Tempo no
tocante ao sucesso do escritor como artista. Bons vinhos finos, assim como bons
livros, não são produtos rápidos, feitos a toque de caixa. É preciso paciência
na hora de produzir. Não basta apenas a “chegada mágica da inspiração” (como
imagina o senso comum alimentado pelo romantismo do século XIX) para que o
poema ou prosa garanta o seu lugar como de arte. É o posterior exercício
crítico de leitura e releitura que testa a permanência da fruição estética do
mesmo. É na leitura “fria” (que eu comparo ao momento de “decantação” do vinho)
que se podem filtrar as falhas do texto e assim emenda-lo – isso quando o texto
se mostra realmente promissor e não “azedou” a ponto de virar “vinagre”. Depois,
quando chegar da publicação do texto, será o mesmo fator Tempo que dirá sobre o
sucesso da obra depois de pronta. Da mesma forma que muitos vinhos ainda
amadurecem dentro a garrafa, os textos amadurecem depois de publicados. E só o
tempo dirá quando o texto atingirá sua maturidade junto ao público, qual será a
duração de seu auge, e/ou quando ele “passará do ponto” e deixará de ser
relevante – mutatis mutandis, similar
ao que acontece com as safras das uvas viníferas.
Aliás,
Fábio Luz (escritor valenciano nascido em 1864), na introdução do seu livro A
Paisagem no conto, na novela e no romance aborda questão parecida, quando diz
(a citar o conceito de caducidade de Schopenhauer): “Dizem que certas bebidas
se tornam mais capitosa quando velhas” (…), “assim também os bons livros devem
ter um longo período de hybernação, tempo suficiente para que se faça o
deposito das impurezas e imundícies com que os macularem os contemporâneos”. E
continua logo depois: “É a caducidade para acquisição de forças; não é a
morte”.
Em resumo, os
autores dos Vedas já falavam que “O tempo é a semente do universo”. O mesmo se
pode em relação à literatura – acaso nós a encaremos com a mesma seriedade de
um enólogo diante da produção de um Riesling alsaciano ou de Chianti. Meus caros amigos e amigas, diante do tempo passado
na minha fala (e que espero não ter extrapolado), eu espero que essa modesta
contribuição possa ajudá-los a compreender um dos aspectos do nosso ofício de
escritor. Obrigado pelo tempo dedicado a ouvi-las.
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