Vitivinicultura
Literária
Prefácio etílico de um livro bucólico
Salvador, 23 de fevereiro de
2012 /
Valença, 25 de junho de
2014.
Pelo título do livro, o prefácio deveria
falar da poesia como um exercício de jardinagem da alma e/ou do estilo. Mas eu
admito que a jardinagem seja algo que eu não tenho domínio suficiente para
fazer a devida metáfora, fazendo com que meu texto soasse deveras artificial. Gosto
(muito) de flores, mas não sei cultivá-las. Aprecio as flores como um enófilo
amador que começa a beber os bons vinhos – chega perto, degusta os olores,
aprecia as formas, estuda um pouquinho, mas não se atreve a entrar nos cernes
mais rebuscados e técnicos da elaboração de um simples vinho tinto seco ou do cultivo
de um pequeno canteiro de jasmins chineses. Desse modo, parto por um caminho por
mim mais conhecido que, sem abandonar o espírito bucólico do livro, lançará melhor
luz sobre alguns pontos acerca a obra.
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Pessoalmente, sempre imaginei o
exercício da literatura como algo mais próximo da produção do vinho. As
palavras e as frases são colhidas nos parreirais do idioma para serem macerados
no tanque branco da página (ou na tela, se pensarmos nos computadores) para
formar o mosto/texto. Depois, são deixadas fermentando e decantando sozinhas no
texto. Convém, para um escritor profissional (ou um autor diletante mais
preocupado com sua produção escrita), que periodicamente retorne aos seus textos,
burile onde for preciso, e, principalmente, acompanhe essa fermentação, a fim
de ver se o texto virou vinagre, se ainda precisa de mais tempo de maturação ou
se simplesmente já está pronto para ser engarrafado no livro e entregue ao
público.
Penso nisso porque os textos (pelo o que
pude tirar de minha experiência), normalmente seguem três caminhos:
01) Alguns textos viram vinagres porque
não resistiram a prova do tempo. Mesmo que, na hora da composição ele realmente
emocione, no outro dia (ou na outra semana, ou ainda, meses e anos depois) eles
já não dizem mais nada à alma. Mostram-se ingênuos ou vazios, ainda sejam
reescritos. Aliás, não é bom mexê-lo: praticamente seria necessário escrever um
novo texto, mais apurado. Não prestam para publicação e inexoravelmente o seu
destino é o lixo ou o fundo esquecido de uma gaveta.
02) Outros textos ainda não envelheceram
o suficientemente bem. São textos difíceis, com um forte travo do tanino e que tendem
a se confundir com os textos avinagrados acima citados: não estão maduros a
ponto de serem publicados. Contudo, isso não quer dizer que seja um texto para
ser descartado. Ele pode ser aproveitado numa edição futura, porque é texto que
nasceu póstumo. Ele ainda guarda surpresas, é um texto indomado, o qual
(talvez) até precise de duas ou três emendas a fim de que possa sair redondo na
página do livro. É um texto cuja leitura, por parte do escritor, precisa ser mais
bem digerida antes de mandar servir aos leitores - digestão essa que pode ser
longa o suficiente que só faça o texto vir a lume pelas mãos de um pesquisador
que, tendo acesso ao arquivo do escritor, o encontre e o publique em uma edição
póstuma de obras completas ou em uma edição crítica.
03) E, last but not least, há os textos que estão prontos para serem
engarrafados. Venceram a prova do tempo e a leitura ainda inebria com
facilidade, não restando dúvidas ao escritor de que já se pode entregar aos
seus leitores.
Asseguro esta minha tese com a produção
destes meus três livros. Estrelas no Lago, Fogos de Beltane e Flores do Outono vieram a lume depois desse processo de escrever,
reescrever, fundir, cortar, ler, reler, recortar, corrigir, aumentar e
(auto)criticar constantemente. Periodicamente foram feitas triagens em cima de
triagens, leituras em cima de leitura, como se eternos palimpsestos fossem.
Em Flores
do Outono, o exemplo talvez seja mais radical. Inicialmente era um mero
título ad hoc para o meu segundo
caderno de poemas, que eu então escrevi ainda na adolescência, quando ainda
morava em Valença. Nesta fase eu apenas coligia todos os meus escritos,
dividido entre a esperança juvenil de um dia talvez publicá-los (e, quiçá,
correr o risco de ser famoso) e a vontade madura de ainda escondê-los, cético quanto
ao seu real valor. Mais tarde, já morando em Salvador (período em que estava
cursando a universidade), tomei a coragem de reunir os meus melhores poemas
para poder registrar junto a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Foi quando
comecei a cristalizar certa crença de, quem sabe um dia, mandar para o prelo os
primeiros meus poemas "maduros". O volume de folhas A4 encadernadas
que enviei para o registro era uma amálgama de outros quatro cadernos, pastas
de computador e alfarrábios que eu já tinha escrito. Aproveitei o título do
segundo caderno, Flores do Outono por
me parecer mais atraente e já naquela vez eu dividira em partes com nomes de
flores, reunindo poemas que pudessem ter alguma identidade entre si. Outros
volumes eu viria a registrar postumamente, reciclando os outros nomes ad hoc dados aos cadernos e pastas.
Quando, mais tarde, resolvi publicar o
meu primeiro livro (o Estrelas no Lago),
mesclei os volumes registrados. Na hora eu achei melhor dar um novo nome para
este livro, mesmo que muito dele tenha a essência do Flores do Outono primitivo. Imaginei o Estrelas no Lago como um livro de estreia que servisse de teste
para os meus poemas, para que, no futuro, eu publicasse o Flores do Outono como o foi inicialmente concebido – projeto que naturalmente
eu abandonei logo depois.
Fato similar ocorreu com Fogos de Beltane, que foi inicialmente um volume ad hoc para participar de um concurso literário e que seguiu uma
lógica parecida com ao primeiro livro (ou seja, coligindo poemas dos cadernos
anteriormente organizados para formar uma segunda unidade editorial). Posteriormente
se tornou no segundo volume de poesia a ser publicado por conta própria,
trazendo alguns dos poemas mais recentes.
Nesse ponto eu pude ver com mais clareza
esse processo da “vitivinicultura literária”: Na medida em que eu retornava a
leitura, repetia-se a observação de textos avinagrados (como na sessão de
poemas dedicados a minha cidade natal, nos muitos se mostraram imaturos e sem
nenhuma força poética que justificar vir a lume), de textos que se mostraram
prontos para serem consumidos naquele momento (ou seja, todos os que saíram
neles) e de textos que ainda precisavam envelhecer mais no barril (como o “A
Jangada Partiu”, que aproveitei nesse volume). Claro, admito que, nesse
processo, eu sacrifiquei poemas que teriam (talvez) mais sentido se publicados
dentro do título original – como no caso de “Flor do Outono” e “Cântico dos
Lírios”. No entanto, vários poemas posteriormente escritos (e que não estavam
alocados ainda nenhum outro volume) mostraram mais afeitos ao espírito desse
volume – como o caso de “Rosa Bianca” e “O Dom da Rosa”, como se não houvesse
mais outro lugar para publicá-los. O resultado é esse volume, digamos que a
versão 3.0 do meu tão acalentado e querido projeto Flores do Outono.
Cito essa história de como eu escrevi
esse meu livro para ilustrar minha tese. A variação de textos entre o caderno
manuscrito, as folhas encadernadas para registro na Biblioteca Nacional e o
livro propriamente publicado ocorreu exatamente porque vi muitos textos se
avinagrando e outros imaturos e póstumos, esperando o momento certo de ir para
o prelo.
Pode parecer, aos olhos dos leigos, uma
excentricidade este meu método de trabalho. Mas tenho certeza que com outros
escritores um processo parecido também se desenrole.
Creio que escrever um livro é ter isso
em mente: todo texto artístico precisa “fermentar”, dar-lhe o devido tempo de
maturação. E dar tempo implica em estabelecer o distanciamento necessário para
que o escritor possa desenvolver sua autocrítica em relação ao escrito, a fim
de se perceber a sua evolução. Não basta apenas pisar e repisar nas palavras no
papel para achar que o texto já está para ser engarrafado - é preciso que o tempo
também aja sobre ele, que haja essa fermentação necessária para se extrair a
essência de uma nova sonoridade, de uma nova sintaxe, de um novo sentido, de
uma nova forma de expressão, qualquer coisa que mexa na língua e cause o famoso
“estranhamento” pregado pelos formalistas russos. Como consequência dessa tese,
percebe-se que a “fermentação” não servirá apenas para aparar pequenas arestas
(como erros ortográficos ou para apurar as frases e os parágrafos). É através
desse processo que o livro ganha sua integridade como obra de arte – que
servirá de marco para a separação entre o escriba diletante e o escritor
profissional candidato a figurar na história.
Ao comparar a produção do vinho com a do
livro, percebo a importância do fator Tempo para o sucesso. Bons vinhos finos,
assim como bons livros, não são produtos rápidos, feitos a toque de caixa. É
preciso paciência na hora de produzir. Quando considero as idas e vindas para
compor esse livro, vejo que não basta apenas a “chegada mágica da inspiração”
(como imagina o senso comum alimentado pelo romantismo do século XIX) para se o
poema garanta o seu lugar como de arte. É o posterior exercício crítico de
leitura e releitura que testa a permanência da fruição estética do mesmo e se
percebe os pontos fracos. É na leitura “fria” (que eu comparo ao momento de
“decantação” do vinho) que se podem filtrar as falhas do texto e assim
emenda-lo – isso quando o texto se mostra realmente promissor, não “azedou” a
ponto de virar “vinagre”. E no caso da composição de um livro de poema, é nessa
hora que realmente se percebe quando o texto está bom. E mais tarde, será o
mesmo fator Tempo que dirá sobre o sucesso do livro depois de pronto. Da mesma
forma que muitos vinhos ainda amadurecem dentro a garrafa, os textos amadurecem
do livro. E só o tempo dirá quando um livro atingirá sua maturidade, qual será
a duração de seu auge, e/ou quando ele “passará do ponto” e deixará de ser
relevante – mutatis mutandis, similar
ao que acontece com as safras das uvas viníferas.
…………………………………………
Eu organizei o presente volume como uma
rede de pequenos mosaicos unidos por uma linha mestra. No meu primeiro livro, Estrelas no Lago, esse procedimento
estava presente em forma embrionária. Os poemas se articulam entre si formando
tênues sequências sem divisões aparentes (como no caso dos poemas eróticos e
dos poemas de amor). Contudo, como o volume foi concebido como um trabalho de
estreia, a linha mestra acabou se limitando na seleção do que julguei serem
meus melhores trabalhos escritos até o momento. Já para o presente volume, não
só deliberadamente dividi as sessões como procurei explorar um leitmotiv especialmente caro para mim:
flores. Selecionei de meus parreirais as uvas que julguem mais apropriadas, levando-me
a reservar os poemas com mais referência a campo semântico da noite e das
estrelas para o meu próximo volume, Sombras
do Luar. Quanto à divisão do mosaico, optei estabelecer a seguinte seleção:
a) Em [Jasmins], coloquei os poemas os quais, de certa forma, eu dialogo
com a minha contemporaneidade, numa poética crítica da vida atual, fruto da
minha ideologia. Evitando cair na tentação de compor poemas doutrinários ao
velho estilo da estética engajada de matriz esquerdista, procurei reunir minhas
reflexões inconformistas sobre a realidade, fustigando nas entrelinhas o que
julgo ser a mediocridade de vida atual.
b) Em [Cravos], apresento um caleidoscópio lírico. Aqui não estabeleci
uma unidade temática (como nas demais divisões), mas tento estabelecer um diálogo
particular com e sobre as possibilidades
expressivas da poesia.
c) Em [Margaridas] estão reunidos os poemas mais picantes. Ainda que certa
carga erótica seja constante na maioria de meus poemas, os que particularmente
compõem esta divisão são aqueles que eu deliberadamente carreguei a mão no
tempero do desejo e da sexualidade. É o meu exercício particular de entrar no
território pedregoso da sensualidade e extrair/traduzir os encantos desse
paraíso temático que é ainda (hipocritamente) preso ao lodo do tabu.
d) Apresentando o outro lado
da moeda, na sessão [Rosas] estão os poemas em que
volto ao velho tema do Amor. Só que aqui eu trabalho o amor na sua totalidade:
o que ficou na lembrança, o que ainda vive, o que é alegria e o que também já
foi perdição, tristeza e tormento.
e) Saindo do sentimento do
amor, [Tulipas] segue com meus poemas do delírio, da embriaguez das sensações.
Embriaguez pela música, pelo vinho, pela poesia, pelas cores e pela expressão
própria das palavras.
f) Para encerrar o livro,
[Edelweiss] reuni meus poemas
escritos em espanhol e inglês. Na verdade, apresento uma prévia do outro livro
meu (até agora parcialmente inédito) chamado Peregrino en una Noche sin Luna, onde apresento meus exercícios
líricos em língua estrangeira, sendo que algumas são as minhas traduções de
outros poemas que eu já escrevera anteriormente.
…………………………………………
Enfim, é isso aí. Espero que
essas palavras iniciais ajudem na compreensão da obra. No fundo, apenas queria
dizer que apreciem os meus poemas desse meu novo livro, com a esperança de que os
poemas contidos nele, não alcançando a altura de um Tokaji húngaro, um Viño Verde
galego, um Valpolicella italiano ou de
um Reisling alsaciano, ao menos não tenham
virado vinagre. Que seja um vinho de mesa encantador e de bom terroir que agrade as papilas estéticas
do leitor.
Tim-Tim! ¡salud!
Ricardo
Vidal