Passeio por uma Praia Virgem
Prefácio para o livro "Letras com Cacau, Cravo e Dendê: Dicionário Panorâmico da Literatura Valenciana"
Valença, 14 de janeiro de
2014
Se um historiador do futuro tiver que
escolher cinco fatos significativos da história de Valença acontecidos nos
primeiros anos do século XXI, o surto de produção literária que aconteceu a
partir da publicação da antologia Valenciando
neces-sariamente deverá ser citado. Em um
feito raro para as demais cidades interioranas do estado da Bahia (até mesmo
para grandes centros como Feira de Santana, Itabuna e Vitória da Conquista, com
longa tradição universitária), pois os autores nascidos e/ou residentes na
cidade de Valença nesse período publicaram 27 volumes no período de 14 anos, o
que coloca aproximadamente a um livro novo a cada semestre, percorrendo
diversos gêneros, como ensaios, crônicas, romances, poemas, memórias e
historiografia.
Em um primeiro momento,
existe a tentação de analisar essa Supernova
Literária1 como consequência direta dos avanços tecnológicos
(como a microinformática e internet) e do reordenamento das políticas públicas
de cultura que ocorreu no período em que Gilberto Gil / Juca Ferreira
capitanearam o Ministério da Cultura. Tal situação poderia dar uma primeira (e
errônea) impressão de que a literatura valenciana é um fenômeno recente.
Contudo, numa análise mais acurada, o que fica evidente é que essa produção
literária é muito anterior. Por exemplo, há a figura do Conselheiro Zacarias.
Mais conhecido pela sua figura de político e estadista do meado do século XIX,
Zacarias iria se notabilizar-se nas letras pelos seus discursos e escritos
políticos, com destaque ao seu tratado Da
Natureza e Limites do Poder Moderador – obra capital para entender o
pensamento dos setores liberais durante o II reinado. E assim como ele,
somam-se as figuras de outros escritores importantes como Fábio Luz, José
Malta, Newton Libertador, Pedro M. da Silva, Elmano Amorim, Galvão de Queiroz e
Admar Braga Guimarães.
Ao mirar com mais calma e
atenção para a riqueza da literatura valenciana (tanto presente quanto
passada), somos levados a crer que existe um grande “território inexplorado”, cujas
jazidas ocultas esperam o momento de serem garimpadas. Para os estudantes de
direito, interessam conhecer as discussões sobre ordenamento constitucional
apresentado tantos pelo Conselheiro Zacarias como por Admar Braga. No campo da
historiografia, Augusto Moutinho e Edgar Oliveira oferecem textos lapidares
sobre a história regional que esclarecem alguns pontos da história nacional
(como no caso do afundamento de navios brasileiros pelo submarino alemão U-507
e o momento exato em que Brasil entrará na Segunda Guerra Mundial). Na área da
escrita feminina, Celeste Martinez e Rosângela Góes escrevem poemas saborosos
sobre a condição feminina, abrindo outras searas para os estudos feministas. E na
poesia, se por um lado Mustafá Rosemberg, claramente formado no espírito de
Olavo Bilac, é um epígono do parnasianismo em que traz um doce erotismo lapidado
no melhor uso lírico do vernáculo da última flor do Lácio, por outro, Adriano
Pereira abre-se para uma contraposição pós-moderna, ao incursionar na
desconstrução morfolexicológica das palavras, cujas brincadeiras gráficas levam
a ter três ou quatro versos sobrepostos numa única linha labiríntica de signos
– clara dialética que traduz muito da alma baiana, sobreposição de rupturas e
tradições. Isso, sem deixar de lado o realismo fantástico na prosa de Araken
Vaz Galvão, abrindo este uma ponte a integrar o litoral oriental brasileiro com
o melhor da tradição literária hispano-americana. Isso, claro, para não citar
os vários poetas e cronistas que jazem esquecidos nos antigos jornais – como
são José Malta, Elmano Amorim e Newton Libertador (para ficar nos exemplos mais
flagrantes).
Diante dessa profusão de
autores, urge que se comece a ter análises críticas que se volte para essa
produção e abram possíveis trilhas de leitura. Num país cujas políticas
públicas eram marcadas pela tradição da ausência do estado (conforme observa
Albino Rubim2), não basta apenas produzir a literatura, como também
se debruçar sobre ela e estudá-la, ter pesquisas acadêmicas e estudos
sistêmicos – até como forma que dessas obras não venham a cair no esquecimento.
É lugar comum entender a
importância da cultura na formação da identidade de um povo. Infelizmente, o
município de Valença mostra-se carente de uma reflexão mais aprofundada de sua
cultura regional – mesmo considerando que atualmente ela é uma cidade universitária
(contando inclusive com cursos superiores de Letras).
Diante desse contexto é que surge
esse volume, como primeira tentativa de se sistematizar a literatura valenciana.
O livro foi concebido exatamente
para ser um pequeno guia de referência da literatura valenciana, apontando
autores, instituições e fatos literários expressivos. Declaradamente visa
preservar a memoria do que se tem até agora produzido, a fim de que futuramente
sirva de subsídios para estudos críticos mais aprofundados.
Deste modo, o livro foi
organizado em duas partes: a primeira, introdutória, foi feito um perfil
geográfico, histórico e cultural do município. Procura-se contextualizar para o
leitor em quais condições é produzida essa literatura e em quais bases residem
suas especificidades. Na segunda, há os verbetes propriamente ditos literatura.
Para tanto foram usados os seguintes critérios na hora da organização:
a)
Autores: Optou-se
por inserir em verbetes aqueles que tenham publicados pelo menos um livro ou que
tenham participado de pelo menos duas obras coletivas, ou uma obra coletiva e
colabore constante na imprensa. Assim, privilegiam-se os escritores que tenham
uma obra mais densa, melhor delimitando os nomes realmente relevantes.
b)
Livros, Eventos e Fenômenos: Além
de um verbete específico sobre as antologias já publicadas, há verbetes para
obras, fenômenos e eventos que por si apresentam relevância dentro da história
literária valenciana, seja (por exemplo) um evento cristaliza um grupo de
escritores ou livros que colocam como marcos na historiografia literária.
c)
Instituições: São
citadas as principais instituições que, de alguma forma, fomentam e promovem a
literatura regional.
Diante a pretensão que obra
se arvora, considera-se, entretanto, reconhecer que essa obra não se apresenta
fechada e detentora do julgamento final. Conforme foi dito anteriormente, a literatura
valenciana ainda é um território inexplorado. Mesmo que esse livro se apresente
após uma longa pesquisa e reflexão sobre os autores da região, há a possibilidade
de que ocorram omissões indesculpáveis ou escolhas passíveis de contestações.
No caso, só resta ao autor ouvir serenamente as críticas construtivas e fazer
as devidas emendas nas próximas edições.
Em suma, espera-se que o
cacau, o cravo e o dendê presente na escrita desses autores e autoras encantem
o leitor.
A todos, um bom passeio por essa praia ainda virgem!
Ricardo Vidal
Notas
1. Período iniciado em 2005, com a publicação de
antologia Valenciando: antologia de
escritores de Valença e que vai se caracteriza pela grande quantidade e
diversidade de títulos recentemente publicados em Valença. Para mais detalhes, ver o verbete homônimo na página XX.
2.
Ver As políticas culturais e o governo
Lula. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo: 2001 (Brasil em debate; vol.
5)
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