. Este encontro poderia ter sido numa recepção de casamento ou num velório – mas aconteceu numa mesa de boteco meio vagabunda. E os nossos personagens poderiam ser os Três Mosqueteiros (ou os Três Patetas) – mas são somente três amigos de infância: Aquiles, Jonas ou Nero. Jonas era professor de geografia, trazia uma pasta com livros, usava calça jeans e camisa pólo. Nero era um obscuro redator de telejornal e usava bermuda e camisa regata, pois estava no seu dia de folga. Aquiles era advogado e acabara de voltar do tribunal de pequenas causas.
. Era um final de tarde de uma sexta-feira estafante e a mesa de bar fora o porto inseguro para afogar as pequenas decepções diárias. Várias garrafas de cerveja no chão e pratos de petiscos refletiam rostos vermelhos e sorrisos alcoólicos de nascimentos fugazes. Recordavam agora os tempos de escolas:
. — Lembra-se do professor Carrasco da Cicatriz?
. — Claro! E os seus bordões? “Enquanto os outros estão perdidos em conta um por um os ângulos, você aplica este macete de colocar menos um em evidência e pronto! Podem dizer que mataram a pau a questão e eliminou concorrente”.
. — Sim, e ele continuando dramaticamente: “Mas é claro que eu não precisava dizer este macete. Vocês já sabiam disso por você são alunos astutos! Alunos… inteligentes. São alunos…”.
. — … do professor Wellington! — concluíram em uníssono e às gargalhadas.
. Era bom relembrar estes tempos tão estranhamente prazerosos! Claro que se perguntassem aos três na época, eles diriam que esta era a pior fase de suas vidas. Mas agora que tinham carreiras sólidas e inúteis, levavam uma vida adulta tão vazia existencialmente, aqueles anos passados era vistos com falsa nostalgia… ou como ponto de partida para ironias.
. — Aquiles, lembra-te do que você queria fazer na vida?
. Aquiles se recordou amargamente dos seus ideais. Frívolo quando jovem e aluno mediano, seguiu a carreira jurídica por imitação ao padrinho, que era desembargador e professor de Direito Romano. Fez um curso regular, mas nada de diferente da maioria de seus colegas arrivistas e pedantes. Mesmo assim fora arrebatado pelo ideal da Justiça e gostaria de ser um grande juiz penal a serviço do bem da comunidade. Sonhava com a glória e a notoriedade de condenar um grande criminoso – mesmo que isso custasse a sua própria vida. Passou a ter a juíza Denise Frossard como musa de seus devaneios. Só que acabou prestando exame para OAB. E seus ideais de servir ao bem comum transformaram-se em modorrento trabalho de ora a defender um bêbado arruaceiro, ora a processar o cachorro de um vizinho. Ficava enfurnado no seu escritório. Os rendimentos são razoáveis que permitem uma vida sossegada. Contudo, há dias em ele se pergunta: de que vale este sossego? Seria melhor uma vida curta e gloriosa do que este longo ocaso da existência?
. — Claro que eu me lembro? Ser vir a Justiça pela bem da comunidade! E é isso que estou fazendo, aceitando as pequenas causas. No mais, gosto de minha vida calma, mesmo longe dos holofotes — E Aquiles bebeu vorazmente seu co-po para afogar a mentira que dissera a pouco.
. — E o seu livro, Dom Nero! Quando ele será lançado e ser aclamado como membro da Academia?
. À medida que Nero alargava seu sorriso amarelo ele se recolhia constrangido no fundo da cadeira. Nero gostava de ler e de escrever. Queria ser escritor – por isso optou em cursar Jornalismo. Mas se decepcionou com a faculdade. Longe de formar novos literatos do porte de um Lima Barreto ou de um Olavo Bilac, o curso formava repórteres e apresentadores de TV. Fez um curso regular e longo por odiar fazer reportagem e trabalhar com meios eletrônicos. Nesses anos penosos tivera algum alento quando publicou alguns contos promissores – O que o levou a prometer a escrever seu grande livro – algo que o projetasse no mundo literário. Assim que se formara, ainda pensou em trabalhar em no caderno cultural de algum jornal impresso. Para sua frustração, ficou pulando de assessoria em assessoria de imprensa até ser contratado como redator de um telejornal sensacionalista. Felizmente não aparecia de frente das câmeras, mas não lhe agradava redigir noticiários policiais ou fofocas de artistas. Nem suportava assistir a programação vulgar e medíocre da empresa onde trabalhava. E o livro ia sendo procrastinado, procrastinado…
. — Minha obra prima? Vai bem obrigado. Ontem redigir algumas páginas. Bem, uma obra prima não é feita assim, de uma hora para outra. Sabem quanto tempo levou Goethe para escrever seu monumental Fausto? Por hora, contente-se em ouvir meus textos sendo lidos na televisão… — Nero acendeu seu cigarro. Tragava-o como um dragão, como a sufocar sua melancolia de não poder se de-dicar unicamente à literatura.
. — Jonas, cadê a gostosa da Rosinha?
. Foi então a vez de Jonas sentir o seu desconforto. Sua ambição era viver um grande amor. Estudioso e tímido, passou a adolescência inteiramente virgem, sem um namorico sequer. Durante os anos na Faculdade de Geociências chegou a freqüentar uns bordéis com os colegas e uns teve uns dois casos rápidos. Em compensação o curso foi espetacular. Seu sonho de valsa só apareceu fugazmente na pessoa de Rosa Bianca. Durante um ano e oito meses ele viveu seu idílio, que terminou melancolicamente com uma briga. Três meses ela se casara com um ex-namorado (o mesmo que anos antes havia traído Rosa com um amigo). Para o sentimental Jonas isso foi um desastre. Vogou dentre prostíbulos até conhecer a enfermeira Maria do Socorro. Ela se afeiçoara com o boêmio romântico. Ele sentia atração e carinho por ela. Depois de namoro morno e de um noivado sem tempero, casaram-se por inércia. Em lugar de uma paixão avassaladora, viviam os dois um casamento sem graça, com filhos a pagar e contas por criar. Como alternativa ao sexo bissemanal e burocrático, Jonas continuava a freqüentar esporadicamente os bordéis. Ele nunca pediu divórcio, pois no final sabia de sua carência afetiva e Maria o socorria perfeitamente quando o vazio resplendia em sua alma.
. — Sei lá! Só não cometem sobre ela para minha amada–idolatrada–salve–salve esposa — E ele correu para o banheiro a fim de enxugar u ma lágrima teimosa que insistia em descer e o envergonhar em frente aos amigos. Voltou com o rosto molhado e os olhos levemente inchados.
. — Amigos, sabem de uma coisa? O único que estava certo era nosso amigo Pierre Truffaut.
.Um silêncio de morte desceu sobre a mesa. Há exatos dez anos, o mais brilhante, o mais talentoso, o mais inteligente, o mais sincero e o mais sedutor dos amigos, não suportando a dor da doença, preferiu adiantar sua entrada no grande mistério da vida.
. Pierre nunca pediram licença para ser feliz e levou sua alegria aos extremos, mesmo que isso chocasse seus amigos. Tinha uma cultura invejável e permitira fazer seus cursos superiores com distinção. Amou as mulheres como o romantismo dos franceses e o ardor dos italianos. Ousou compor uma ópera bem sucedida e deixara alguns volumes de poesia e ensaios. Era sempre solícito e so-lidário com os amigos e sempre respondia um ato mesquinho com um sorriso e uma palavra de confiança. Escondia suas tristezas e dificuldades para levar conforto ao amigo. Tinha suas loucuras, seu opiniões extravagantes em relação à vida. E assim que recebeu o diagnóstico da doença fatal, resignou ao suicídio. Não queria sofrer nem fazer sofrer a quem amava. Antes, deixou um último pedido aos seus amigos queridos: Pedia que eles tivessem uma vida acima da mediocridade e digna de seus talentos e aspirações.
. Com o fantasma da promessa não cumprida ao amigo morto, os três procuravam encher seus vazios existenciais com fumaça de cigarro, porres alcoólicos e altas taxas de colesterol. Não demoraram muito para os três se despedirem deste baile de máscaras; e cada qual levava sua máscara morta de volta para sua mediocridade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário