Salvador, 11 de dezembro de 2004
. Finalmente Roberto chegara ao seu destino sonhado. Os anos passados na universidade não foram para que ele se tornasse um professor de literatura respeitado; foram para realizar um velho sonho de adolescente de província: flanar pelo centro de Paris. Não como um turista que cronometradamente sai da Torre Effiel para ver a Mona Lisa no Louvre – mas como um boêmio que se delicia com o crepúsculo às margens do rio Sena, sem compromisso com Deus ou com o Estado.
. A tarde estava agradável no final de outono. Depois de se alojar em um hotel confortável e barato nas imediações do Quartier Latin, ele vestiu calça negra, boina negra de veludo, camisa existencialista (modelo clássico de malha negra e gola rulê) e um capote negro a la Matrix. Dentro do capote, além dos passaportes brasileiro e espanhol, trazia um legítimo cognac, charutos Havana (Martinica produz bons charutos? Na dúvida, trouxe os cubanos), a mini antologia bilíngüe da poesia francesa de Cláudio Veiga e um livro de poemas de José Inácio Vieira de Melo. Estava pronto para baldear na Citè Lumierè.
. Saiu pela Rua de Vaugirad até o Jardins de Luxemburgo. Vagou entre a Rua Soufflot (Ah, o Panteão!) e o Boulevard Saint Germain. A Île-de-la-Citè em sua frente, com suas bancas de livros encheram os olhos de gula. Após comprar dois livros, caminhou até a Praça Saint Michel e procurou um banco tranqüilo onde pudesse contemplar o Palais de Justice.
. Sentou-se com gosto, como se fosse o próprio Jean Valjean ou um personagem de Sartre ou Balzac. Devidamente acomodado nos seus devaneios, ritualisticamente acendeu seu charuto. Após àquela letárgica e gaulesa baforada, bebeu uma dose longa de cognac. Que sensações singulares inundavam suas papilas gustativas! Para complementar o seu íntimo orgasmo intelectual, começou a ler os versos do Correspondances de Baudelaire.
. Já lia os primeiros versos quando viu um guarda chegando sua direção. Discretamente, Roberto apalpou o capote, para se certificar de que estava com os passaportes. Um incômodo começou tomar seu corpo com a aproximação do policial. Pensou em ignorá-lo, mas o perfil do guarda se agigantou em sua frente até fincar sua presença ante a Roberto. Na lapela lia-se: Pierre - CRS. O policial disparou a queima roupa:
. — Bonjour, monsieur!
. — Bonjour, monsieur! – respondeu Roberto com os olhos inseguros e se levantado cauteloso de sua extinta placidez.
. — S’il vous plaît,… - continuou o guarda, para o desespero de Roberto. Em seus ouvidos a fala da Pierre tornou-se um zumbido confuso. O que o policial estava falando? Roberto se lembrava de seu aprendizado: brasileiro, aprendera Inglês como segunda língua no ensino fundamental. Estudara Letras com Espanhol na Universidade por influência do avô imigrante. Depois Italiano para o doutorado em Leopardi. E embora gostasse muito da França, só desenvolvera pessimamente um francês de fronteira, para leitura e balbucio cinco ou quatro expressões. Como poderia se comunicar ele com Pierre?
. Roberto ficou calado em infinitos quinze segundos. Seus olhos se arquearam numa dúvida, como a indicar ao guarda seu incômodo. Pierre voltou a perguntar em francês quando Roberto segurou a coragem em seus lábios trêmulos e disse um "Pardon, monsieur, Je ne comprends pas", interrompendo o guarda. Este se calou. Seu rosto continuava simpático embora emanasse autoridade. Pierre olhava para o charuto aceso de Roberto.
.Roberto prosseguiu no seu francês estropiado:
. — Je suis… (Deveria ele dizer que era cidadão brasileiro ou espanhol? Temia o preconceito contra os latino-americanos. Preferiu dizer uma meia verdade) Je suis un brésilien.
. — Touriste brésilien? – Pierre franziu amigavelmente a sobrancelha. Seu olhar continuava fixo e sedento pelo charuto.
. Roberto continuou preocupado. Suas roupas não eram de um turista convencional. Qual seria o problema? Esta era sua primeira viagem ao exterior. Viajava sozinho, sem um roteiro prévio além daquele que traçara na juventude. Não esperava passar por aquilo. Por que não fora para Santiago de Compostella? Não, seu sonho era a Paris de seus romances. Discretamente voltou a passar a mão no bolso do casaco para se certificar dos documentos. Estavam lá. Que alívio! Seu charuto, que vontade de pô-lo na boca para poder aliviar a tensão! Que vontade de beber um gole de cognac! Roberto tomou de novo coragem e perguntou para o guarda se ele falava português. Resposta negativa. Não ousou falar em italiano, pois conhecia as rusgas entre Gauleses e Romanos. Nem arriscaria falar no idioma britânico. Arriscou o castelhano:
. — Parlez-vous Espagnol, monsieur?
. Outra resposta negativa. Pierre olhava ainda para o charuto que jazia esquecido na mão de Roberto, que cada vez mais ficava tenso. Seria proibido fumar em praça pública na França? Eu conhecia várias leis estranhas pelo mundo, mas aquilo lhe parecia um absurdo. Estaria o guarda suspeitando que estivesse com alguma droga ilícita? Estaria ele desconfiando que eu fosse um terrorista? Também, meu rosto moreno era mais levantino que sertanejo. E se o guarda visse meus dois passaportes? Roberto foi sendo tomado por um pavor interno que enrijecia suas cordas vocais. Seu sonho caía das nuvens para de suas cinzas nascer este pesadelo. Por um momento ele deixou de ser um professor universitário para ser um adolescente perplexo, com medo do castigo iminente.
. Finalmente Pierre chamou uma outra policial que passava naquele momento. Roberto se tornara pânico e vergonha. Seria preso agora, na frente de todos? A jovem guarda que se aproximou era simpática. Na lapela, lia-se Jeane D’Arc. Os dois trocaram algumas palavras até que ela virou-se para Roberto perguntou em português se ele era brasileiro. O sotaque levemente lusitano confortou o coração de Roberto. Ao menos alguém estava falando em português. Ele respondeu nervosamente que sim. Será que agora saberei o porquê da prisão? Com um sorriso de santa nos lábios, ela prosseguiu:
. – Meu colega Pierre queria pedir ao senhor um charuto. Ele aprecia os bons Havanas só que aqui eles são muitos caros e os de Martinica não lhe agradam…
Uma lufada de ar tranqüilo expeliu do corpo de Roberto todas as suas preocupações. Rapidamente tirou uns sete charutos de dentro do capote e ofereceu para os dois policiais. Jeane recusou delicadamente. Pierre pegou uns quatros e agradeceu efusivamente. Os dois partiram em sua ronda pelo parque.
. Roberto voltou para seu charuto. Sentou-se com o coração mais calmo. Tomou um gole de cognac e deu outra baforada, suspirosa e caribenha. Trocou de livro – agora desejava os versos pátrios de Zé Inácio. Roberto sentia-se mais do que nunca um personagem de Sartre ou Jean Valjean naquela tarde de Paris.
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