Luiz Gama: A Poesia Negra da Abolição
Luiz Gama ganhou fama como um dos mais intransigentes líderes dos movimentos abolicionista e republicano. Advogado das causas de liberdade e jornalista de língua ferina foi autor de versos que tanto denunciavam as mazelas sociais como cantou a beleza da musa negra.
De escravo a jornalista
Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu em Salvador em 21 de junho de 1830. Mulato, filho de Luíza Mahin (principal liderança da Revolta dos Malês, em 1835) e de um fidalgo de origem portuguesa que participou da Sabinada em 1837. Mesmo tendo nascido livre, foi vendido aos dez anos e idade pelo próprio pai (para cobrir dívidas e jogos). Foi a última vez que viu sua família na Bahia.
Durante o período em que foi escravo, aprendeu a ler e a escrever. Em 1848, após fugir de seu senhor, conseguiu as provas d sua liberdade. Alistou-se na Guarda Nacional, chegando a ordenança de Conselheiro Furtado de Mendonça, então chefe de Polícia e professor da Faculdade de Direito de São Paulo. Conforme confessou mais tarde, do conselheiro guardou a gratidão pelas boas lições de letras e de civismo que recebera. Abandonando a carreira militar, entrou para o serviço público como amanuense (escrevente) da Secretaria de Polícia de São Paulo em 1856. Nesta época, tornou-se amigo do poeta e professor José Bonifácio, O Moço. Também se tornou autodidata em Direito e Humanidades.
Em 1859, publicou a primeira edição do seu livro "Primeiras Trovas Burlescas de Getulino". Posteriormente, dedicou-se exclusivamente à imprensa, donde pode fazer uma carreira brilhante e polêmica na defesa dos ideais republicanos, abolicionistas e liberais. Colaborou nos jornais O Cabrião, Radical Paulistano, Correio Paulistano, A República (órgão do Partido Republicano Paulista), O Polichinello (do qual foi proprietário) e A Província de São Paulo (atual Estado de São Paulo). Na primeira edição d’O Polichinello, expôs em versos a linha editorial que seria adotado pelo jornal. Daí em diante, o ex-escravo autodidata entrou em definitivo para a seleta República das Letras que regia o Brasil, até então dominada pela elite branca que tinha acesso à dita cultura erudita.
Após ser demitido de seu cargo na Secretaria de Polícia, passou a trabalhar como advogado provisionado, especializando em defender na justiça a libertação dos escravos. Em muitos casos, sequer cobrava seus honorários.
Membro fundador do Partido Republicano, líder incontesti da esquerda liberal radical (chegando a ser acusado de agitador a serviço da Iª Internacional Socialista - liderada por Karl Marx e Friedrich Engels), Luiz Gama faleceu em 24 de agosto de 1882. Morreu muito pobre, contudo, sendo um cidadão respeitado legando um nome honrado ao seu filho Caio Graco Pinto da Gama. Segundo os jornais da época, seu funeral foi o maior jamais visto na capital bandeirante. Nele se acotovelaram negros e brancos; abolicionistas ilustres e grandes senhores de escravos; conservadores, liberais, radicais e republicanos.
Orfeu de Carapinha
Sua produção literária limita-se a um único livro publicado, "Primeiras Trovas Burlescas de Getulino", além de poemas esparsos e artigos publicados nos jornais.
A primeira edição foi feita em São Paulo e constava ainda com dez pomas de José Bonifácio, o Moço - seu amigo e ilustre professor da Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1861, foi publicada no Rio de Janeiro a segunda edição, correcta e augmentada (sic). O livro foi aclamado pela crítica literária da época.
A ousadia permeia os poemas de seu livro, a começar pela própria situação de negro-autor, numa época que timidamente o negro entrava como personagem secundário na literatura brasileira. Precursor da Negritude Literária, sua produção antecede e contrasta aos versos embranquecidos de Cruz e Souza, o nosso Cisne Negro do Simbolismo mundial, e a prosa engajada e suburbana do mulato Lima Barreto. Também faz o contraponto com os poemas de Castro Alves. Enquanto este cantava a abolição como condor apaixonado e apiedado pela situação do escravo; Luiz Gama açoitava com o riso e inteligência o preconceito racial e a escravidão.
Seu livro se caracteriza principalmente pelas sátiras, que se tornaram raras na nossa grande literatura, durante o século XIX. Em seus versos, retratava a política os costumes brasileiros da época com um humor ferino e inteligente. Na pele de Getulino, cuja lira é legítima descendente do Boca de Inferno Gregório de Matos, vai rindo a pretensa fidalguia branca das nossas elites, do preconceito racial, das mulheres escravas da moda, da Guarda Nacional (do qual já foi soldado), da política conservadora e monarquista do país – não poupando até a figura veneranda do Imperador D. Pedro II.
Ao mesmo tempo, demonstrava o orgulho de ser negro. Em seus versos, deixava claro ser um Orfeu de Carapinha. Também foi o primeiro a cantar nestas plagas a beleza da Musa de Guiné, da cor do azeviche, em pleno contraste à musa branca européia que dominava (e ainda domina) as nossas Letras. Isso pode ser atestado nos poemas “A Cativa” e “Meus Amores”. Essa consciência étnica avant a lettre encontra eco na própria trajetória de sua vida, filho de uma negra malê revolucionária, e único intelectual negro a autodidata brasileiro a sofrer as agruras da escravidão.
Outra ousadia de Luiz Gama está na linguagem adotada. Zombando do leitor quando se diz um poeta menor, ele alia um sólido conhecimento do vernáculo lusitano e das técnicas poéticas (fruto de suas constantes leituras) com as palavras e a alegria de origens africanas - como pode ser visto no poema “Lá Vai Verso”. Antecipa deste modo à Antropofagia Oswaldiana, ao colocar no plano literário o falar cotidiano do Brasil, que até só se encontrava, escondido, em alguns poemas satíricos e eróticos de Gregório de Matos, mas era totalmente desprezado pelos grandes literatos da época.
De seus poemas, o mais lembrado é “Quem sou eu”, mais conhecido como “A Bodarrada”. Obra-prima da sátira nacional, o poema desnuda com maestria a hipocrisia da sociedade, a listar quantos “bodes” (apelido depreciativo dados naquela época aos negros e mulatos) escondidos em trajes alvos de ovelha existiam (e existe) nas elites brasileiras.
Dentro da linha satírica, também merece nota os poemas “O Rei-cidadão” e “O Velho Namorado”. No primeiro, mostra as contradições do governo de Dom Pedro II, opondo a então imagem pública de governante democrático (com ares quase republicanos) e o que seria a realidade, a de um imperador que detinha sozinho todo o poder. No segundo, narra as desventuras de um velho que tenta cortejar uma jovem.
No plano lírico, encontramos belos poemas contra a escravidão “O Coleirinho” e “No Cemitério de São Benedito” e o pungente “Minha Mãe”, intermezzo afetivo de uma pena que sempre esteve à disposição na luta pela liberdade e da república - além dos já citados versos amorosos de “A Cativa” e “Meus Amores”.
"Primeiras Trovas Burlescas de Getulino", de Luiz Gama é um livro ímpar de nossa produção literária, leitura obrigatória para quem queria conhecer um outro lado da nossa literatura e pouco discutida nas escolas.
GAMA, Luiz. Primeiras trovas burlescas. Edição preprada por Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Coleção poetas do brasil).
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