Sua Majestade, O Bardo

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Valença, Bahia, Brazil
Escritor, autor do livro "Estrelas no Lago" (Salvador: Cia Valença Editorial, 2004) e coautor de "4 Ases e 1 Coringa" (Valença: Prisma, 2014). Graduado em Letras/Inglês pela UNEB Falando de mim em outra forma: "Aspetti, signorina, le diro con due parole chi son, Chi son, e che faccio, come vivo, vuole? Chi son? chi son? son un poeta. Che cosa faccio? scrivo. e come vivo? vivo."

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Liberdade - Tragedia Existencial


(21h12) Salvador; 28 de julho de 2010.
Romeu olhou o cardápio. Apesar de dever o cheque ouro até quase o limite e faltando um dia para o crédito do salário, ele não se furtou de beber alguma coisa no “Rei do Mate” do Shopping Galeria, na noite de quarta-feira. Limitou-se, contudo, a um mate quente com cravo e canela – sem o costumeiro quiche de alho-poró. Pagou com moedas arduamente garimpadas de suas algibeiras.
Cansado de um dia modorrento na repartição onde trabalha, Romeu escolheu uma mesa no canto da lanchonete, vizinha a um grupo de publicitárias balzaquianas (sozinhas estariam elas? pensou Romeu), vestidas de blazer azul-pastel, cabelos soltos e independência. Elas discutiam elétricas o conceito de um website numa ilha própria de existência. Uma delas, presumivelmente a mais velha e com o corpo moldado pela ginástica, possuía uma discreta tatuagem tribal na região do cóccix, semi-coberta pela calcinha de algodão. Romeu não deixou de perceber o detalhe da tatuagem. Olhou discretamente. Se ele desejou não se sabe, pode ter sido frações de segundos que escaparam ao narrador.
A verdade é que ele não estava com cabeça para flertes. Não seria canalha para trair Julieta sua noiva. E mesmo que fosse canalha para tanto, sua cabeça voava alhures com tantas preocupações: Os carimbos que lhe roubam o tempo, o projeto de mestrado sempre adiado, a inscrição no próximo concurso artístico, matrícula mal-vinda na auto-escola, o cheque ouro no vermelho, a compra de uma casa só sua, a enxaqueca que o perseguia teimosamente, uma vontade louca de mudar de ares - enfim, a eterna luta entre o ser, o querer e o dever.
Para arejar a cabeça durante a preparação do mate, Romeu sacou de sua bolsa-carteiro um volume de Simone de Beauvoir. Leu alternando as linhas sobre o Egito com a bela Tatuagem tribal da mesa vizinha. A leitura estava tão instigante que ele quase não percebeu  a garçonete pondo a xícara na mesa.
Colocou o livro de lado. Pegou papel e caneta e sorveu o primeiro gole. Ah, volúpia de oboés e jasmins era a quentura do mate descendo pela sua garganta. Os sabores intensos e vermelhos eram sinfonias asperamente macias que Romeu sentia naquele momento. O corpo ficava leve. Já não havia peso de carimbos (deixados para trás há duas horas) nem limite estourado de conta corrente. Melhor, a Tatuagem tribal da mesa vizinha se contorcia em ondas diante dos seus olhos. Estava leve, livre. Como a muito não se sentia.
Romeu bebeu mais um gole. Canela com matizes de fagotes tocando sinfonias amarelas. Isso limpava a pintura pequeno-burguesa que sua noiva lhe pintava nos últimos meses. Beber o mate do pacato Doutor Jekyll o fazia esquecer da maldita carteira de motorista que deveria tirar. Também não havia mais feijoada em família, cerveja com os amigos, prestação vencida e obrigações financeiras futuras. Não havia mais o Romeu encenando a comédia da vida civil: folha-de-ponto pontualmente preenchida, diploma superior na parede, o bom-mocismo de um filho de família classe média e católica, noivo fiel e honesto. O que havia era um Romeu boêmio, refinado, inteligente, sedutor (talvez). O Romeu de seus livros. Era o mesmo o Romeu de sempre e ao mesmo tempo diferente. Um Romeu que só surgia nestes mates clandestino, longe da vida civil.
(Não sei Romeu percebeu agora, mas a Tatuagem tribal da mesa ao lado parecia possuir uma aliança no dedo. Ele não se ligou nesse lance. Para mim, que sou o narrador, este detalhe é importante, só que infelizmente não captei. Seria ela casada ou comprometida? Essa era dúvida. Mas desde quando isso seria empecilho para uma aventura? Se era anel o que ela usava, isso não a impediria de ter uma aventura. Afinal, Ana Karenina e Madame Bovary, eis os exemplos. Só que isso colocava então outra questão para a história: Romeu trairia o seu nome? Talvez, para que a história ganhasse sabor humano. Olhando novamente para a situação, vejo que seria interessante dizer que as balzaquianas estavam cochichavam sobre o meu personagem. Não as ouço bem. Talvez não, elas poderiam estar conversando sobre o website - o que seria naturalmente mais interessantes para elas do que olhar para um personagem de conto. Nem sempre podemos pedir que as personagens sigam os caminhos que autores traçaram previamente e por isso fica apenas a impressão de elas passaram a olhar o Romeu, este personagem que para elas se mostrava misterioso, entretido com o seu mate e as anotações que começara a fazer então e as quais nem imaginavam por onde caminhavam os pensamentos dele. Voltemos para Romeu).
Com mais da metade da xícara vazia, Romeu deixou de divagar. Já não mais se sentia uma célula metropolitana, que mecanicamente cumpri normas e horários. Estava livre dos compromissos, da vida tributada e vazia. Não se sentia mais oprimido. Libertara seu Senhor Hyde, bem mais calmo, sem os abusos e excessos. Olhou novamente para Tatuagem tribal. Era linda, pensou ele. E seus pensamentos seguiram livres: Ficção Steampunk, o sonho de ser professor de estética, palestras sobre Nietszche e Simone de Beauvoir, uma casa no campo. De vez em quando Romeu rabiscava uns tópicos, alguma coisa intraduzível, pessoal…
– Olá! Você está nos desenhando? – a pergunta vinda de uma das balzaquianas da mesa vizinha trouxe Romeu de volta à realidade.
– Não. Estou rascunhando algumas idéias sobre estética e feminismo. – Respondeu Romeu, ainda tonto. – É um projeto para meu mestrado.
– Ah! Bem que você possui cara de professor! Bom trabalho para você.
Logo depois a lanchonete fechava suas portas. As balzaquianas se levantavam. A mulher com tatuagem tribal sorriu para Romeu e se despediu. Elas se perderam na multidão que saia do Shopping.
Romeu saiu depois. Voltava para as correntes da realidade cotidiana. Nunca mais veria aquela tatuagem tribal. No outro dia reveria sua Julieta, com quem dois anos se casaria e compraria contrariado um carro, enquanto morava de aluguel. Tentaria um mestrado algum dia? Não sei. O que eu sei é não foi desta vez que ele ficou completamente livre.

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