Sua Majestade, O Bardo

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Valença, Bahia, Brazil
Escritor, autor do livro "Estrelas no Lago" (Salvador: Cia Valença Editorial, 2004) e coautor de "4 Ases e 1 Coringa" (Valença: Prisma, 2014). Graduado em Letras/Inglês pela UNEB Falando de mim em outra forma: "Aspetti, signorina, le diro con due parole chi son, Chi son, e che faccio, come vivo, vuole? Chi son? chi son? son un poeta. Che cosa faccio? scrivo. e come vivo? vivo."

domingo, 28 de setembro de 2008

Iara-Mirim

Iara-Mirim

Salvador; 21 de dezembro de 2004 (à noite)

Não sei quem me contou, só sei que o conto me foi contado assim como eu estou te contando agora.

Pedrinho Malagueta era um menino arteiro e ardido como uma pimenta malagueta, de tanta traquinagem que ele fazia no Arraial do Bom Sossego. Esperto como o jabuti das lendas dos bugres, ágil como um sagüi das matas e teimoso como um jegue; Pedrinho só parava quando fazia uma arte que deixasse até o Tinhoso de cabelo em pé e o fizesse andar desconfiado depois. Mas apesar disso, todos o acabavam perdoando no final, pois ele tinha um coração de ouro, como o de um anjinho barroco no altar na capelinha. Seu problema era a teimosia…

Pois bem, era uma tarde ensolarada e a brisa que vinha serena e fresca para relaxar trouxe consigo o Tião Mascate. Como dificilmente alguém vinha para aquelas bandas da serra, sua chegada era motivo de festa e alvoroço no arraial – principalmente para gurizada.

Assim, logo depois que o mascate falou com o senhor vigário e armou sua tendinha na praça, Tião se sentou debaixo do umbuzeiro e começou a picar o fumo enquanto via cair o crepúsculo rubro dentre as cumeeiras alaranjadas e violetas da serra. Era como uma senha para as crianças deixarem seus folguedos e se acomodarem quietinhas em torno de viajante, de modo de ouvir suas histórias e causos.

Tião era um exímio contador, como os poetas da antiga Grécia. Falava de reinos distantes e de princesas encantadas. Falava de cidades em que as pessoas moravam que nem formigas em casas mais altas que um morro e de carroças que andavam sozinhas, sem cavalo ou burrinho. Falava da Europa de mil castelos e das Arábias de desertos sem fim. Falava das maravilhas das ciências e dos mistérios da fé. Falava de bicho e de gente – e também de assombração! Tião contava com gosto como montou numa Mula sem Cabeça e de como surrou um Lobisomem. E principalmente, de como quase casou com a Uiara que vivia no ribeirão que nascia ao pé da serra vizinha ao arraial. E como as crianças gostassem mais desta história, Tião punha mais tempero nela. Contava e exagerava na beleza da cabocla, de cabelos lisos e negros que nem a asa da graúna, de voz suave e límpida como o canto de sabiá e das lágrimas de diamante que ela verteu quando ele partiu. Tião terminou comovido o causo, mas respirou fundo e advertiu para nenhum menino tentasse procurá-la, pois lembrou que a Uiara sempre afogava quem se apaixonassem por ela.

Mas para Pedrinho o conselho lhe era surdo. Seus olhinhos brilhavam que nem dois mboitatás numa noite de lua nova. Talvez por esta ficando um homenzinho e o coração estivesse a ser picado por um bichinho novo, talvez por pura teimosia infantil de moleque arteiro e ardido, só sei que Pedrinho queria porque bem queria ver a tal moça do ribeirão. Queria tocar a cabeleira negra e lisa, queria ouvir sua voz suave e límpida. E embora Tião não tivesse dito, não duvido que Pedrinho sonhasse com os lábios rubros de beijos doces que nem o mel da jataí.

Sua cabecinha começou a maquinar uma de suas. Pediu para Tião contar de novo como e quando encontrou a Uiara. Claro que Tião contou alegre, mas no final, como a desconfiar de Pedrinho (já conhecia das artes do menino) perguntou o porquê do interesse. Pedrinho desconversou com uma risada sonsa e saiu a dar cambalhotas e piruetas. Como já a noite tivesse chegado e a história tivesse se acabado, as crianças foram seguindo as estripulias de Pedrinho, deixando o mascate em paz.

Mas tarde Tião foi ter com o velho Quincas Pimenta, pai de Pedrinho. Como já prevendo uma diabrura, foi preveni-lo. Desconfiou dos olhinhos brilhando que nem mboitatás. Quincas depois contou para Constança, sua esposa, que contou também o senhor vigário, pois assim haveria de mais gente para tentar por juízo em Pedrinho. O vigário conseguiu que Pedrinho confessasse seu desejo pela Uiara do ribeirão. Aí todos tentaram demover ele dessa idéia. Tião lhe contou causos e mais causos de homens que morreram afogados. Quincas prometeu uma boa sova caso ele fosse de noite ver a tal Uiara. O Vigário deu conselho e lembrou do fogo do inferno para quem se envolve com estas assombrações. Constança apelou para as lagrimas maternas. Finalmente, Pedrinho só teve sossego quando prometeu que não iria mais sair naquela noite. Os adultos, por precaução, passaram a vigiá-lo. Foi uma noite, duas, três, passou a semana e nada de Pedrinho fazer de suas artes para ver a sereiazinha. Tião acabou partindo com suas mercadorias. Quincas cuidava da roça e Constança fiava em casa. Pedrinho ia para escola e fazia suas pequenas travessuras, mas não falava mais na Uiara. Passou outra semana, e outra, no final, passou um mês.

Mas Pedrinho era ardido demais! Fez todos esquecerem a história para ele por seu plano em prática. Quando todos já estavam nas suas camas dormindo e roncando, quando o arraial era só sossego e silêncio, Pedrinho se levantou de sua cama, foi andando pé ante pé e devagarinho abriu a janela de seu quarto. E como menino useiro e vezeiro, pulou a janela e se esgueirou como uma sombra pela escuridão, até um tronco caído de jequitibá, onde ele havia guardado um lampião, um facão e um colar de continhas, tudo preparado de véspera para seu encontro com a Uiara.

Tudo pronto, ele entrou mata adentro e dentre os troncos, trilhava tranqüilo e traquino pelo arvoredo. A lua seguia alta como uma coroa prateada rodeado pelo manto de cetim negro do firmamento. O luar abria o caminho enquanto o lampião espantava as demais assombrações. Uma ou outra coruja passava com seu pio agourento. O coração de Pedrinho era um misto de medo infantil e valentia de adolescente. Duas léguas depois ele chegava a seu destino.

Ainda de longe deu para ver o espelho prateado da lagoa onde nasce o ribeirão. Pedrinho apagou seu lampião e deixou os olhos de acostumarem com a escuridão. Aconchegou-se perto de uma goiabeira conhecida sua e ficou a assobiar uma modinha que ouvira a alguns dias de seu pai. Nas mãos segurava o colar de continhas. Assobiou uma, duas, três canções que conhecia e nada da Uiara aparecer. Já estava quase desistindo quando surgiu de dentro da lagoa uma indiazinha bela.

Não era mulher feita como falava Tião, porém uma menina quase adolescente – como Pedrinho. Estava nua, usando apenas com uma pulseira de contas, um cordão cheio de muiraquitãs cingindo a cintura e um pingente de penas que se aninhava em seus seios. Ela nadou um pouco nas águas até chegar às margens e se sentou numa pedra negra. Ajeitada como uma rainha brejeira, ela colocou uma rosa na cabeleira e ficou a cantar. Era um solfejo terno, como de um sanhaço enamorado.

Pedrinho ficou a olhar, até que depois de alguns minutos tomou coragem e timidamente passou a assobiar, acompanhando a canção da cunhantã. A Uiara, bem brejeira, continuou sua canção de costa para Pedrinho, como se não houvesse mais ninguém nas cercanias. De simples acompanhamento passou a um dueto, em que o assobio do menino respondia aos solfejos da menina e vice-versa. Finda a ópera tapuia, a uiara se virou e acenou para o nosso herói. Ele saiu de seu esconderijo com seu presente.

A uiara ficou apaixonada pelo rapazote de cabelos ruivos como uma arara-pitanga, rosto suave como um anjinho barroco e de olhos escuros e brilhantes como mboitatás. Pedrinho também se apaixonara pela iara-mirim de cabelos negros e lisos, de lábios rubros e olhos lindos como muiraquitãs. Tião não havia mentido quanto à beleza da tapuia.

Assim que Pedrinho chegou perto, deu-lhe o colar de continhas. A Iara-mirim deu-lhe em troca um dos seus muiraquitãs, que colocou como pingente. Depois de trocados os presentes, os lábios dos dois se tocaram num beijo singelo, primeiro beijo de amor. Olhos fechados e lábios quentes, corpos se enlaçando no abraço infantil. Ficaram assim por alguns minutos, até quando se ouviu um alvoroço enorme e tochas vindo em direção da lagoa.

Foi tudo muito rápido. De uma hora para outra a Iara-mirim sumiu na lagoa e os pais de Pedrinho Malagueta mais alguns moradores do arraial chegaram ao ribeirão. Quincas ainda deu um puxão de orelha no menino. Dizia seu Quincas: Menino, mas não lhe disse para você ter cuidado com Uiara? E se ela tivesse pegado você e o levasse agora para o fundo do rio? Mas, não sei se por milagre ou por arte já calculada, Pedrinho inventou uma desculpa qualquer que lhe fez escapar de um bom castigo. Todos voltaram para o arraial. Pedrinho passou a mão no bolso e viu que o muiraquitã estava lá, como lembrança daquele beijo caboclo.

Agora, o engraçado é que, enquanto no mundo dos homens havia essa alvoroço todo, lá no ribeirão, lá no reino encantado das Mães d’Água, Botos, Paranamaias e Ipupiaras, a Iara-mirim também recebia sua bronca da Uiara-Mãe: Iara-mirim arteira e ardida, eu já não te falei para evitar de se encontrar com os homens da superfície? E se eles te fizessem mal e a levasse para ficar presa no aquário, como atração de circo?

Compadre, eu não sei como souberam deste detalhe. Só sei que foi assim que aconteceu. E acabou!

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