O Quarto de Soeiro Suarez
Salvador; 30 de junho de 2008.
“A vida segue sempre em frente
O que se há de fazer...”
O Caderno – Toquinho/Mutinho
Primário
Quando Soeiro era criança, seu quarto era imenso. Era um reino encantado e sua casa era um mundo enorme.
Seu guarda-roupa era uma montanha mágica e misteriosa sempre com novos lugares a serem explorados. Sua mãe tinha medo dos perigos desta montanha, que algum desabamento pudesse soterrá-lo. Mas quem iria convencer a criança Soeiro sobre perigos se nesta montanha havia tesouros mágicos no topo a serem descobertos e cavernas maravilhosas onde pudesse se esconder?
Neste reino de fadas e fantasias havia uma cômoda onde ficavam seus brinquedos e uma estantezinha onde ele guardava seus desenhos infantis. Na parede as histórias eram contadas pelos quadros da Disney. Em cima de cama os elfos sorriam e as bruxas voavam num móbile feito pelo seu pai. O tapete era uma planície de aventuras, em que as almofadas de bichinhos serviam como colinas móveis para as batalhas com os soldados de borracha.
Claro que noite seu reino tinha seus fantasmas e suas sombras e seus medos. Havia algo na escuridão e no silêncio que pareciam evocar vampiros e monstros. Por isso que, muitas vezes, quando acordava no meio da noite, corria desesperado pelos longos corredores da casa para dormir na cama de seus pais.
De todos os lugares o melhor era sua cama. Era seu veleiro de pirata predileto que usava para navegar na imaginação. Com um cabo de vassoura fazia um mastro. A tripulação eram bonecos de plásticos. E com eles, Soeiro estivera na ilha Baratária de Dom Sancho Pancho e navegara junto com o capitão Ahab a procura de Moby Dick. Lutara contra o Capitão Gancho na Terra do Nunca e ainda ajudara a resgatar o professor Pierre Arronax quando este fugia do Nautilus. Algumas vezes Soeiro chegou até a pular a janela do quarto para enterrar tesouros no quintal. E quando estava com sono, deixava seu navio vogando suave pelo Luar. E assim, como o Barão Munchausen, velejava pelo Mare Nubium[1],[2], Lacus Spei[3] e Sinus Iridum[4].
Ginásio
E foi numa dessas viagens que Soeiro aportou na pré-adolescência. O quarto poderia parecer grande, mas já não era tão encantado assim.
A cômoda e a estantezinha forma substituída pela escrivaninha (onde ficavam seus livros paradidáticos) e pelo criado-mudo. Não havia mais o móbile de elfos sorrindo e bruxas voando, porém um móbile de foguetes de cartolina, que o próprio Soeiro fizera na escola. O tapete era o lugar onde não poderia deixar o par de tênis sujo e as almofadas serviam esporadicamente como armas para guerrinhas com o irmão caçula. Nas paredes, os quadros da Disney que não empoeiravam de velho foram transferidos para um pequeno sótão da casa de praia da família Suarez.
O guarda-roupa encolhera e virara uma colina sem muita importância. Não havia tesouros mágicos no topo, mas o lugar onde ficavam os últimos brinquedos que ainda lhe divertia. Quanto às antigas cavernas, viram cofres onde escondia algumas revistas em quadrinhos – contrabando proibido. Também as noites já não causavam mais sustos (exceto quando algum barulho vinha de fora e pudesse sugerir um ladrão…).
Não queria ser confundido como criança, mas ainda estava longe de ser adulto. Isso Soeiro sentia quando suas tias ainda o mimavam com apertos nas bochechas e falando com aquela voz de quem está falando com um bebezinho. Também não gostava quando alguém ralhava com ele, dizendo os “não pode” de crianças: não pode ouvir isso, não pode assistir aquilo, não é horário de criança ficar acordado… Mas quem poderia controlar o sono dele? Depois os melhores filmes passavam a noite depois da novela…
Já a cama… esta ainda era um veleiro. Mas um veleiro diferente de outros anos. Já não tinha o mastro de cabo de vassoura nem tripulação. Como Soeiro já não era mais capitão pirata, sua antiga embarcação tomava ares de navio-fantasma. Diria até que se assemelhava ao Holandês Voador ou ao Mary Celeste. Talvez o correto fosse dizer que sua cama se transformará no castelo de popa, o refúgio do capitão. Ainda assim, isso não impedia de continuar visitando Sancho Pança, Capitão Nemo e Simbad através dos livros. E quando Morfeu e o João Pestana vinham mais tarde, Soeiro ainda vogava para a Lua. Só que desta vez ela ia para outros lugares como o Oceanus Procellarum[5], Mare Crisium[6] e Lacus Temporis[7].
Colegial
E o tempo foi passando pelos mares…
Então Soeiro acordou. Era adolescente. E o quarto encolhera. Não era tão grande nem tão pequeno. Só que ele começava a se sentir um pouco abafado dentro dele.
Também já não era mais o seu antigo reino encantado. Era a parte de casa onde Soeiro poderia respirar um pouco de privacidade e curtir na solidão os sofrimentos e as perplexidades causados pelas mudanças que seu corpo sofria.
Nas paredes só havia pôsteres das bandas “Queen” e “The B-52’s” e dos filmes “Sociedade dos Poetas Mortos” e da trilogia “Indiana Jones”, colados com fita crepe. Já não tinha mais tapete, nem móbile e muito menos almofadas de bichinhos – havia dois pufes onde ele jogava seu corpo cansado. Ganhara uma televisão com DVD e um computador (que fora do pai) para seus trabalhos. O guarda-roupa era um guarda-roupa eternamente desarrumado cujas portas ele transformara numa galeria da revista Playboy. Também escondia suas primeiras revistas pornôs, junto com as revistas de super-heróis. Quantos aos brinquedos… somente os soldados de chumbo ficavam perfilados no criado-mudo, como um enfeite antigo, quase mofado.
Decisivamente Soeiro estava em outra estação, vibrava em outra sintonia. Festas, Baladas, os primeiros beijos, novas responsabilidades. Tinha algo que lembrava o romantismo de Werther e a rebeldia de James Dean nas suas ações.
Só a cama que aparentemente não mudara. Continuava sendo seu refúgio. Era lá onde Soeiro gostava de ler seus romances de Júlio Verne e Alexandre Dumas, os contos de Caio Fernando Abreu e os quadrinhos da Marvel de Detetive Comics. Também era lá onde chorava suas brigas com seus pais e, de vez em quando, provava solitariamente à noite os primeiros prazeres adultos. E assim dormia, esquecendo que o barco continuava sua viagem, atravessando o Lacus Luxuriae[8], Lacus Timoris[9] e Mare Imbrium[10].
Universidade
Então um dia (outro dia mágico) Soeiro acordou. Era jovem, atingira a maioridade. E seu quarto ficou pequeno e sua casa o asfixiada.
Suas paredes eram prateleiras e mais prateleiras com sua biblioteca. Como estudara Letras Vernáculas, seus romances foram incorporados ao acervo técnico. No criado mudo ficava seu aparelho de som e na escrivaninha atulhava com CDs de música clássica e de Bossa Nova, junto com o retrato da namorada. No maleiro do guarda-roupa, algumas caixas escondiam seu passado: os soldados de chumbos, os desenhos infantis, algumas revistas pornográficas, os vários cadernos de escolas e as fotocópias encadernadas da faculdade.
A velha porta era seu escudo para evitar as inevitáveis discussões com sua família. A velha harmonia da infância virava agora nunca cruenta disputa geográfica, onde os filhos e os pais precisavam sempre demarcar seus territórios e seus momentos. Todos intuíam que isso era chato e deixava a mamãe Suarez triste (já que ela primava pela união da casa). Contudo, Soeiro também precisava de seu espaço; viver sua vida segundo seus ditames, não pelos preconceitos de seus pais. Por mais que ele tentasse ser freudiano para suportar sua vida, a sua formação meio sartreana meio marxista o impelia a querer mais e mais do que simplesmente um quarto pequeno de Rodion Raskólnikov. Ele se sentia um Julien Sorel vestido de vermelho e negro, um Dr. Fausto que lera Nietzsche pronto a conquistar o mundo. Isso seus pais poderiam entender, quando ficavam implicando com ele por conta dos gastos com o telefone???
Por isso que ele sentia necessidade de sair daquele quarto pequeno. Mas iria para onde??? E o que ele iria depois da formatura?? E ele iria mesmo abandonar seu ninho? Então ele procurava sua cama, para meditar e solucionar seus problemas.
Com muito custo que sua cama agora era de casal (com jeito coube no quarto) e de vez em quando sua namorada dormia com ele. E durante a noite, Soeiro vagava (inconscientemente, porque já não se esperaria que um futuro Doutor ficasse brincando de Capitão Gancho numa cama), ora pela Sinus Asperitatis[11], ora pelo Lacus Solitudinis[12]. Às vezes passava pela Sinus Concordiae[13], Sinus Roris[14], Lacus Oblivionis[15] ou Lacus Odii[16]. Todavia, muitas das vezes encalhava apenas no Palus Somni[17], como quem deixa o Tempo levar as mágoas para chegar a algum porto no Sinus Sucessus[18].
Casamento
E assim chegou a grande noite. Soeiro dormiria pela última vez no seu quarto. Já não era menor nem maior. Tinha o mesmo tamanho que sempre teve, desde sua infância. Ou melhor, estava mais vazio. Não tinha móbiles, nem biblioteca, nem reino ou escrivaninha. Apenas uma cama velha, de criança, que sua mãe armou (Será para os netinhos passarem o dia com a avó, justificava-se ela). Já havia alguns meses que Soeiro se mudara para sua casa nova. Contudo, não sei por qual saudosismo, ele resolveu passar aquela noite lá. E como alguém que reencontrava um antigo tesouro, ele entrou no seu navio pirata. Mas não visitou nenhum pântano, lago ou mar da Lua. Apenas dormiu como um anjo barroco, perdido nas nuvens…
------------------------------------------
[1] Todos os nomes latinos aqui referidos são acidentes selenográficos, mais precisamente os “Mares” da Lua.
[2] Mar das Nuvens.
[3] Lago das Esperanças
[4] Baía do Arco-Íris
[5] Oceano das Tormentas
[6] Mar das Crises
[7] Lago do Tempo
[8] Lago da Luxuria
[9] Lago do Medo ou do Pavor
[10] Mar das Chuvas
[11] Baía da Aspereza
[12] Lago da Solidão
[13] Baía da Harmonia
[14] Baía do Orvalho ou do Orvalho ou da Lágrima
[15] Lago do Esquecimento
[16] Lago do ódio ou do Rancor
[17] Pântano do Sono
[18] Baía do Sucesso
Um comentário:
Delicioso! Leitura deliciosa que parece a vida da gente e dá a sensação que alguém leu nossos pensamentos mais secretos.
Parabéns!
Janda
Postar um comentário